sábado, 11 de fevereiro de 2012

Narciso jogando em seu espelho


NARCISO JOGANDO EM SEU ESPELHO
(uma incerta poesia contemporânea)[1]

Profa. Dra. Raquel R. Souza
PG-Letras – FURG

Muito tem se falado e escrito sobre a necessidade de novos critérios para a História das Literaturas. Eu mesma, ainda que circunstancialmente, já tratei disso quando apresentei uma leitura sobre a poesia de Cecília Meireles e o temário da infância[2]. É consenso que a visão totalizadora e unificada, ainda tradicionalmente apresentada nos cursos de graduação, não dá conta dos inúmeros matizes que a literatura, em especial a poesia, contemporânea apresenta. As tentativas de traçar panoramas abrangentes sobre a produção poética brasileira após Semana de Arte Moderna, em 1922, tem frustrado porque inevitavelmente priorizam certos temas e poetas mais afeitos aos conceitos de “representativos” dos seus autores, com os quais, aliás, não preciso concordar. Por outro lado, a parte estas questões de cunho ideológico, basta também lembrar que a própria noção de História, de Tempo, de Espaço há muito foi pulverizada, não só pela Filosofia, como pelas ditas Ciências Naturais, como a Física. Então, parece que por parte da crítica especializada, e por todos aqueles que se dedicam ao estudo da poesia, parece que vamos meio à deriva, meio sem saber onde está a identidade da poesia, vamos nós também na errância de uma identidade que se multiplica indefinidamente nestes anos de alta modernidade.
Como num reflexo de outro reflexo, a poesia se dispersa e a crítica-teoria que vai atrás também se dispersa em multiplicidades às vezes impensáveis.  Sobre a produção de poesia, muitas são as antologias, cujo cuidado principal parece residir em uma espécie de historicização da poesia brasileira, notadamente a partir dos anos sessenta do século XX. Ao lado das antologias paralelamente correm ensaios que intentam a mesma coisa. Dos mais fecundos, cito dois: “Crítica, razão e lírica”, de José Guilherme Merquior, e “Sincretismo”, de Pedro Lyra.

Eu, particularmente, entendo que um caminho fecundo e prazeroso para estudar poesia brasileira é buscar alguma identidade, ainda que imatura e multifacetada, uma identidade que se torne plural e que admita inclusões variadas – ou seja, uma identidade que não é bem uma identidade nos moldes usuais. Parto, então, do que para mim é um princípio quase metodológico. A poesia brasileira, notadamente a partir do século XX, perseguiu dois vieses que se cruzam e que se bifurcam, com os quais tenho insistentemente trabalhado em minhas pesquisas. Refiro-me à dois blocos temáticos, que expressam cada um a seu modo as crises identitárias a que temos sido submetidos desde o início da modernidade. A lírica, especialmente, tem apresentado um eu-lírico em busca de reflexos nos quais possa se reconhecer, ao mesmo tempo em que a própria palavra poética se reflete numa angustiosa e, ainda assim, deliciosa perseguição das suas essências.
Vejo nisso revivências de certos mitos fundacionais da própria noção de modernidade, e que podem ser resumidamente citados pela recorrência dos mitos de Narciso, de Orfeu e do Labirinto, todos os três originários da Grécia e que mesclados a outros tantos mitos forjaram uma espécie de “cultura ocidental” muito presente em nossos dias de modernidade líquida, alta modernidade, sobremodernidade, pós-modernidade e outras formas correlatas de designar a contemporaneidade. Aliás, Durand já atentou para a ocorrência de trocas de mitemas entre os mitos, bem como de acréscimos e decréscimos de mitemas. O seu conceito de bacia semântica, que inclui conceitos de perenidade, derivações e desgaste do mito, indica caminhos para se entender melhor aquilo que nossos poetas fazem e que nós, mesmo sem ter exata consciência disso, também fazemos, pois neles, nos poetas, reconhecemos nossos sentimentos e destinos. A lírica, sabemos, surgiu nos primórdios gregos, com Safo, Píndaro e Anacreonte, todos três preocupados com uma certa noção de indivíduo que priorizava o sentimento particular em detrimento da coletividade impressa no épico e no dramático. Então, para mim o caminho natural é seguir as reescritas e redimensionamentos dados ao jogo especular, no qual brotam o sujeito confessional e a poesia. Trata-se do duplo, no seu viés particular e no seu viés profissional.
            Não tenho certeza se essa perspectiva que adoto, quer dizer, buscar entender a poesia em um movimento cultural maior mediada pelo imaginário, é a melhor ou a mais indicada para se trabalhar com poesia; também não tenho cristalizada a idéia de que o poema não deva ser tratado assim tão cientificamente como usualmente se faz nos meios acadêmicos. Eu, particularmente, adoto algumas idéias de Bachelard como forças motrizes para ler poesia. Uma delas é o binômio ressonância e repercussão. Essas idéias implicam, necessariamente, que o crítico seja prioritariamente um leitor, mas não uma entidade abstrata, na qual cabem inúmeras pessoas sem rosto definido. De certa forma, estou dizendo que é necessário assumir uma identidade pessoal diante do poema de outrem, e para falar sobre ele, o poema, é preciso assumir essa individualidade, dizendo-se, nomeando-se, usando-se como caixa de ressonância, para que o poema encontre condições de ser e de dizer aquilo a que veio. Quer dizer, em meio a tantas preocupações com o coletivo, eu assumo minha individualidade e a reafirmo na medida em que elejo como material temático as questões identitárias dentro da lírica, quer no seu contexto narcísico, quer nas suas tramas metapoéticas. Eis meu labirinto profissional! Por ora, fico com narciso (mas necessariamente não com o narcisismo!).
Durand diz que:
Não há mito inicial, puro (...). Qualquer mito não é senão o conjunto de suas lições, poder-se-ia mesmo dizer de suas leituras(...) O mito decompõem-se em alguns mitemas indispensáveis que lhe conferem sincronicamente o sentido arquetípico, mas, diacronicamente, ele é apenas constituído pelas lições circunstanciadas por esse acolhimento, essa leitura muito particularizada (...) Há que sublinhar este paradoxo, em que a permanência só é conferida pelas variações. (DURAND; 1996:155). 
            Gostaria, então, de ler uma seqüência de pequeníssimos poemas, englobados por um título bastante sugestivo:
Narciso (jogos)



Tudo
acontece no
espelho.

A fonte
deságua na própria
fonte.

Leio
minha mão:
livro
único.

Um deus
olho
ôlho no
ôlho.

A vida é que nos tem: nada mais
                                            temos.

A luz está
em nós: iluminamos.

A aventura
- a
    ventura –
fluir
sempre.

Nunca amar
o que não
vibra

Nunca crer
no que não
canta.

Vemos por espelho
e enigma

(mas haverá outra forma
de ver?)

o espelho dissolve
o tempo

o espelho aprofunda
o enigma

o espelho devora
a face.




            Este poema é de Orides Fontela, do livro “Teias”. Trata-se de poeta algumas vezes mencionada, mas pouco lida. No mais das vezes, ela aparece em algumas antologias com referência à sua poesia destituída de grandes discursividades, de poucas palavras, intensa, extremamente econômica. O próprio título indica a leitura a ser feita. Os jogos a que ela faz referência no título constituem, por assim dizer, alguns mitemas do mito original, como se fossem pequenos capítulos nos quais a narratividade está tão concentrada, tão coesamente tesa, que é preciso, talvez, recorrer à narração do mito, inscrito literariamente pela primeira vez em Ovídio, em suas Metamorfoses. De todos modos, Ovídio também reescreveu aquilo que ouviu ou soube por intermédio de outros.

No plano do mito consta que Narciso é fruto da união forçada de Céfiso (deus-rio) com a ninfa Liríope. Narciso nasceu com extrema beleza, o que deixou sua mãe muito preocupada com seu destino, levando-a a consultar o adivinho Tirésias, que, perguntado sobre a vida do rapaz responde que ele viverá muito se ele não se conhecer. Ele segue, então, solitariamente. Ocorre que a ninfa Eco apaixona-se perdidamente pelo efebo e o segue de longe em suas caçadas, mas é incapaz de pronunciar o nome do amado porque ela não possui voz própria – ela só pode repetir as últimas palavras pronunciadas por Narciso. A ninfa foi castigada por Hera, esposa de Zeus, porque a jovem, com sua tagarelice, distraía a deusa enquanto Zeus fazia suas conquistas amorosas com outras ninfas. Ao descobrir o estratagema, a deusa a castiga, condenando-a a só repetir as últimas sílabas das palavras que ouvia. Por isso Eco não podia expressar seu amor por Narciso. Um dia o rapaz percebe que alguém o segue e que repete suas últimas palavras. Chama-a e pergunta por que ela o evita. Ao tentar responder Eco apenas consegue repetir as palavras do amado e, desesperada por não conseguir se fazer entender, abraça-o e é rejeitada. Narciso lhe diz: “Para longe com seus braços, eu prefiro morrer a deixar que você me toque”. Sendo rejeitada, a moça refugia-se nos bosques e montanhas e passa a morar sozinha até que, sofrendo as torturas do amor rejeitado, definha e se transforma em pedra, ficando somente o lamento da sua voz que repete as sílabas finais das palavras.

As outras ninfas também tentaram se aproximar do rapaz e foram repelidas, por isso invocaram a justiça, pedindo a Nêmesis que as vingassem: “que também ele possa amar e jamais possuir o objeto de seu amor”. Atendendo aos pedidos, depois de uma caçada, a deusa conduz Narciso a um recanto no qual, ao sentir sede, ele se inclina sobre uma fonte de águas cristalinas. Ao beber da água virgem, fica encantado com a imagem que vê nas águas e se apaixona por tão bela figura. A partir daí não sai de perto das águas da fonte Téspias sempre buscando um contato com a imagem adorada. Passa a não se alimentar e começa a definhar. Mesmo sabendo que se tratava de sua própria imagem o que via refletida nas águas límpidas, morre perdidamente apaixonado por si mesmo sem jamais conseguir tocar-se. No lugar onde jazeu nasceu uma linda flor de poderes inebriantes que recebeu o nome de narciso.

Originalmente, todo mito encerra uma aprendizagem, e este ilustra o poder de Nêmesis que restabelece a justiça universal. Narciso foi punido por ter desejado subtrair-se à lei comum e por ter se recusado a amar alguém.

            Retornando ao poema de Orides, os episódios são divididos em dez, como se fossem estações de aprendizagem. A gente as percorre com uma certa curiosidade, pois todos conhecemos o destino um tanto trágico do efebo, mas sempre há uma esperança. Claro, a gente não esquece que há um distanciamento bastante considerável entre aquilo que o poema diz, melhor, sobre quem o poema diz, e o que a gente pensa da gente mesmo. No entanto, quem nunca se entregou ao saboroso olhar-se num espelho? Quem nunca perseguiu sua própria imagem para saber do que ela é feita? O poema joga com a estorieta do rapaz que se apaixona por si mesmo, já que no título a ele se refere, e, por outro lado, fala da experiência de um eu no qual nos reconhecemos como força ativa.

            A linguagem extremamente econômica causa um certo impacto porque destituí a narratividade, digamos, mais explícita; por outro lado, torna o poema um complexo de subentendidos, de pressentidos, intuídos, tudo em uma tensão que pode explodir a qualquer momento. A primeira parte, por exemplo, “Tudo / acontece no / espelho.”, encerra, de fato, o final do poema, e antecipadamente entrega ao leitor a sabedoria que emana dos mitos e das suas respectivas reatualizações. Por outro lado, esta reatualização de Orides suprime episódios com os quais estamos acostumados a lidar quando se trata de narciso.

Tal qual faz com sua linguagem, a sua releitura é sintética, permanecendo apenas aquilo que lhe interessa acentuar: a relação entre eu e eu-outro, mas sempre atendendo por uma identidade que se diz eu e nela se regozija. A multiplicidade, ou melhor, o desdobramento do eu não está vinculado a qualquer coisa fora de si mesmo: “A fonte / deságua na própria / fonte.” O que se busca está no interior e não em um reflexo de alguma exterioridade. Como movimento, trata-se de um círculo espiralado, centrífugo, porque nada deve ser deslocado de seu centro: nem a água da fonte, nem a aprendizagem que está por vir, pois a leitura será feita sobre si mesmo, configurando, assim, um cosmos que nasce a cada mirada de si mesmo.

A visão de si surge de maneira epifânica, porque o contexto relativo à deus coloca a visão como revelação divina. Corroborando, o eu-lírico olha olho no olho. Versos tão curtos, tão intensos, e por isso muito significativos. Quase uma anáfora, de verbo torna-se substantivo e que na expressão “olho no olho” adquire um sentido de interiorização profunda, lembrando, assim, a idéia do poço, elemento arquetípico que simboliza o conhecimento adquirido pelo mergulho na interioridade, na qual a borda é o segredo e a profundidade o silêncio. Quem mergulha no poço, ou faz dele referência, estreita laços com o sagrado. Esse dado da divindade, do sacro, é reiterado nas significações do verbo que comanda esta ação: olhar. As possibilidades, aqui, se abrem porque se trata não apenas do verbo, mas também do substantivo e ambos remetem a um quase sem-número de referências. No entanto, é o verbo quem faz a ação. Olhar é símbolo e instrumento de revelação. Abrindo o Dicionário de símbolos em busca do verbete “olhar”, lemos que

O olhar do criador e o olhar da criatura constituem o que propriamente está em jogo na criação, segundo a concepção sufista do mundo. Invocam-se um ao outro e não existem um para o outro senão por meio de um e de outro. Sem esses olhares, a criação perde toda a razão de ser. Mais adiante: empregar o seu olhar não é brincar com este mundo das aparências, é desvenda-lo, para descobrir nele o olhar do Criador; então o mundo é compreendido como o próprio jogo do olhar de deus, como o fluir de seu tesouro, a revelação de seus atributos. (CHEVALIER&GHEERBRANT; 1997:653).

A citação ficou um pouco extensa, mas muito explicativa, já que as estrofes seguintes, até culminância da penúltima, vão justamente desvendar os mistérios da busca incessante do eu, implicitamente intuída na leitura da mão e no olhar do olho no olho.

Os versos na seqüência do poema, constituem aforismas, como se deles brotassem verdades, conhecimentos, lições conclusivas para as perguntas corriqueiras de nossa época, que no poema não aparecem de forma explícita. De todos modos, as estrofes que se agrupam com esta significação, têm, para referendar o que mencionei, as marcas sintáticas da conclusão, isto é, os dois pontos. Leiamos: “A vida é que nos tem: nada mais / temos” e “A  luz está / em nós: iluminamos.” É de se observar que a pessoa gramatical mudou.

Nas duas estrofes anteriores, aquelas do livro e do olho, a marca é na primeira pessoa do singular. Agora, depois de feita a revelação, o eu se transforma em nós. Essa sutileza da troca de pessoa gramatical sugere uma outra compreensão do eu, ou aquilo de que a reatualização de narciso feita por Orides revela a partir de seu poço interior. Aos politicamente corretos de plantão, gostaria de lembrar que para a compreensão da identidade não é necessário estabelecer um sistema de exclusão entre o indivíduo e o grupo. Os pares antitéticos, típicos por exemplo em nosso Romantismo, aqui não tem função, porque já não dão conta da sincronicidade de situações e sentimentos. A poeta já sabia disso, pois em seu poema, o leitor é epifanicamente arremessado a um contexto diferente daquele esperado. Dissolver-se em um cosmos (“A vida é que nos tem”), anular-se a partir daquilo que lhe é mais interno, para daí espargir o que temos, isto é, a luz. Sem dúvida, trata-se de uma individualidade ainda estranha ao racionalismo do ocidente. Essas questões são muito controversas, mas mesmo assim gostaria de lembrar a opinião de Jean-Pierre Vernant:

            ... o indivíduo fora do mundo, o indivíduo no mundo. O modelo do primeiro é o renunciante indiano que, para se constituir a si próprio na sua independência e singularidade, deve exclui-se de todas as ligações sociais, separar-se da vida tal como ela é vivida pelos homens. O desenvolvimento espiritual do indivíduo tem como condição, na Índia, a renúncia ao mundo, a ruptura com todas as instituições que formam a trama da existência coletiva, o abandono da comunidade à qual pertence, o exílio num lugar de solidão definido pela sua distância relativamente aos outros, pela sua conduta, pelo seu sistema de valores. Segundo o modelo indiano, o aparecimento do indivíduo não ocorre no âmbito da vida social: implica que ele a tenha abandonado. (VERNANT et alli; 1987:25).

O que me parece é que o poema, na continuidade de suas estrofes curtas e muito prenhe de significados, ou seja, na sétima, oitava e nona, desvenda o mistério da existência e o conhecimento dela, ou seja, o “tudo” dos versos iniciais, que se dá somente no espelho, naquele olho no olho dito na quarta estrofe. A aventura, isto é, a vida propriamente dita, posto que eufemicamente revelada nos seus sememas: risco, sucesso imprevisto, acaso, sorte –  a aventura se fragmenta nos dois versos seguintes da sétima estrofe, formando a ventura, com a devida indicação do artigo definido “a” para a mesma relação antes citada, isto é: fortuna boa ou má, sorte, destino, felicidade, risco, acaso, perigo. Enfim, a vida mesma. “Fluir sempre” é a sua conseqüência natural. E o que significa esse fluir perenamente? A minha pergunta não está no texto de Orides, mas é forçoso fazê-la, pois o poema tem seguimento.

“Nunca amar / o que não / vibra // nunca crer / no que não /canta.” A resposta à minha pergunta vem antecedida de um advérbio de negação que se repete introduzindo as duas estrofes. Contudo, trata-se de uma forma visceralmente negativa: nunca, que quer dizer em tempo algum. Não é dada a possibilidade de amar qualquer coisa, a não ser aquilo que vibra. E nesse caminho, vibrar implica em ter emoção, sentimentos. Posso, então, afirmar que a vibração está no organismo vivo – portanto amar somente a vida. Por outro lado, completando a resposta, crer somente onde houver canto. Ao canto, primordialmente, está ligada a poesia. Se há canto, há poesia. Ambos contextos na mesma estrofe indiciam uma relação íntima entre as partes. Amar a vida e crer na poesia. Esta é a ventura a que se refere o poema.

Mas de onde mesmo essas verdades brotam? Creio que o narciso de Orides é, pela natureza que ela nos apresenta, muito diverso dos que tenho trabalhado. O conhecimento é dado pelo auto-conhecimento, em uma vertente que prioriza a identidade mesma. Quer dizer, não é preciso repudiar a individualidade, não é necessário buscar na diferença aquilo que falta ou pelo negativo encontrar o certo. O meu livro único me é dado pelo meu olho dentro do meu olho. Na escrita de Ovídio, e por muitos anos, vigorou a idéia de repúdio ao ensimesmamento, como se o admirar-se consistisse um pecado redimível somente com a morte. A subversão ao mito original, em Orides, ganha foros de aprendizagem, ou melhor, os tempos contemporâneos exigem uma outra leitura e conseqüente percepção de mundo a respeito do eu que se busca e se contempla. O traço do erro, do inadequado, do incorreto dá lugar à configuração de um conhecimento tão íntimo que se esparge para o outro, referido na primeira pessoa do plural com que a poeta conjuga os verbos “ter” e “iluminar”. 

A nona parte retoma o olhar, mas em uma forma abrandada, isto é, ver. Não quero aqui me alongar sobre esta questão tão espinhosa quanto profícua. Basta-me, apenas, a ressalva de que o verbo “ver” está conjugado na primeira do plural. A constatação de que o aprendizado sobre si conduz ao aprendizado da vida não se oferece de maneira direta e objetiva, mas por reflexos. Parece-me que aqui a poeta contraria toda uma tradição filosófica ocidental de buscar sempre não a imagem, mas o objeto em si mesmo. Posso inferir daqui também uma outra questão que tem me ocorrido sempre que releio o poema. O conhecimento de si que leva ao conhecimento do mundo, isto é, uma verdade divina sobre a vida, é tão intensamente forte que somente por reflexos podemos alcançá-la. Recontextualizando o mito da Gorgó, mais conhecida como Medusa, a visão direta sobre os mistérios causam paralisia, cegueira e morte. É preciso, como Perseu, usar de estratagemas seguros para ver o rosto da “ordem do mundo” e não perecer (como o efebo da lenda que não soube ver-se). “Espelho” e “enigma” são vocábulos que semanticamente se complementam, porque em ambos a imagem resultante não é dada de forma direta e objetiva.

A explicação contida nos versos abertos pelo uso do parêntesis subverte a ordem usual das coisas: “(mas haverá outra forma / de ver?)”. A pergunta indicada pelo uso da interrogação é, na verdade, a própria resposta, pois a gente mesma já está convencida de que não, não há outra forma de ver.

O espelho, da décima e última parte, é o espaço onde tudo acontece, já dito nos versos iniciais. “O espelho dissolve / o tempo”. No entanto, Orides desarticula as bases tradicionais de se apreender a realidade. A Física, que até os primórdios do século XX assegurava que a realidade era dada pelos vetores tempo e espaço, vê-se decomposta. Resta  o espaço onde a consciência de si se dá. Sem a soberania do tempo, o que lembra as idéias de Bachelard sobre o instante em detrimento da idéia da “duração” de Bergson, o espelho do olho no olho adensa a questão da identidade, típica nas reatualizações do mito de narciso feitas a partir da modernidade. Em Orides, ela adquire uma perspectiva que vai da intensa individualidade ao cosmos. Por isso, talvez, os dois versos finais terminando a anáfora desta última parte, ou capítulo: “o espelho devora / a face”. A face é apenas uma parte do rosto, não o seu todo. Mas é também significativamente uma metonímia da presença de Deus, aliás, nomeado na quarta parte do poema. Devorar implica, principalmente para os poetas brasileiros pós Semana de Arte Moderna, o ato antropofágico tão maravilhosamente imaginado por Oswald de Andrade. Pela antropofagia podemos amalgamar as diferenças, tornando-as  partes de nós mesmos, e, principalmente, adquirir as virtudes que desejamos. Os versos finais, sintomaticamente, vêm graficamente demarcados em um alinhamento diferenciado dos demais.

Narciso deixou de ser apenas um rapaz que se perdeu na autocontemplação e que foi punido com a morte por não ter atendido o apelo da natureza. Também não é mais um indício de autocentramento inócuo e sem sentido. Os mitos se reatualizam porque ainda nos falam de nossos desejos, de nossos destinos, de nossas inquietações. E a poesia ainda é palco para essas revelações especulares.



BIBLIOGRAFIA:



FONTELA, Orides. Teia. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

DURAND, Gilbert. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1986.

VERNANT, Jean-Pierre. A morte nos olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

VERNANT, Jean-Pierre et alli. Indivíduo e poder. Lisboa: Edições 70, 1987.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

LYRA, Pedro. A poesia da geração 60. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.        









[1] Texto apresentado no III Seminário nacional de História da Literatura, promovido pela pós-graduação em Letras, da FURG, 2007.
[2] Uma chance paraa infância na História da Poesia Brasileira; texto apresentado no II Seminário Nacional da História da Literatura, Rio Grande, FURG, 2005.

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