(este texto foi apresentado sob forma de conferência em abril de 2011, na faculdade de filosofia e letras da universidade de córdoba, espanha)
Hoje em dia, muitas são as
construções teoréticas para as escritas de um eu “real”, empírico, a quem o
leitor imediatamente identifica ao nome do autor estampado na capa do livro. No
Brasil, esta prática, isto é, o simulacro do eu sobre o simulacro da ficção,
tem sido praticado com muito vigor desde os anos 90 do século passado, tendo se tornado, hoje
em dia, uma prática muito recorrente. No entanto, alguns poetas modernistas se
dedicaram, nos anos 60 e 70 à escrita autobiográfica. Os exemplos são
abundantes, mas gostaria de nomear apenas um, talvez o mais conhecido fora do
Brasil. Refiro-me a Carlos Drummond de Andrade. Sua obra poética se estende de
1930, com a publicação de “Alguma poesia”, até 1996, com “Farewell”, publicação
póstuma. Começou a escrever poesia sob a influência direta do Modernismo
Brasileiro, tendo passado por algumas fases, ou faces, as quais abarcam um período
histórico marcado pela repressão política interna, passando pela Segunda Guerra
Mundial, Guerra Fria, preocupações socialistas, e inúmeras inovações
técnico-formais na poesia. Drummond,
como o chamamos no Brasil, nasceu em
Itabira, cidade interiorana de Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902, e
faleceu em 1987, no Rio, uma semana após a morte da única filha.
Como é poeta de largo fôlego, sinto
dificuldades em restringir minha proposta de leitura para este encontro. Então,
de acordo com o tema – autobiografia – vou me ater à sua, chamada de
“Boitempo”, um neologismo que junta dois substantivos: “boi”, característico da
mansidão e do ato de ruminar (mastigar e re-mastigar o alimento); e “tempo”, cujo
significado todos conhecemos, e que na composição de Drummond está
intrinsecamente atrelado ao tempo passado. A autobiografia de Drummond é
composta por três volumes de poesia: “Boitempo”, “Menino antigo” e “Esquecer
para lembrar”, publicados em 1968, 1973 e 1979 respectivamente. Gostaria de
lembrar, neste momento, que quando se fala em “autobiografia” e correlatos,
geralmente a associamos a um complexo narrativo que alguém faz de sua própria
vida. O caráter narrativo de tais textos parece estar, de uma forma ou de
outra, tácito entre autor e leitor. Bem, Drummond, nos longínquos anos de 68,
no Brasil, parece que intuindo a “fórmula” de Lejeune, antecipadamente rompe
com aquele famoso quadro dogmático que Lejeune propôs em 1975: “narrativa
retrospectiva em prosa”.
Posso dizer que se trata de reafirmar uma
atitude prenunciada no seu primeiro poema – “poema de sete faces”, de 1930 –
cuja primeira estrofe diz o seguinte: “Quando nasci, um anjo torto / desses que
vivem na sombra / disse: Vai Carlos! Ser gauche
na vida (...). O “gauche” não é mera figura de retórica, porque, ao longo de
sua obra poética, ele encarnou a diferença como marca identitária. Então, sua
autobiografia seria necessariamente escrita em outra forma, que não a
tradicional narrativa. Mas, curiosamente, ao longo de sua vida, ele manteve um
diário, intitulado “O observador no escritório”, sobre o qual, por questões de
tempo, não farei referência. Na série “Boitempo”, sua vida é “narrada” por uma
voz enunciativa que algumas vezes se mostra em sujeito poético e em outras em
eu-lírico. Há, por certo, um fio narrativo, porém perceptível apenas ao final
da leitura dos três volumes. A
autobiografia de Drummond é composta por Boitempo
– 84 poemas; Menino antigo – 128
poemas; e Esquecer para lembrar – 201
poemas. Dessa forma, a figura usual do autobiógrafo sofre algumas alterações. A
escolha da prevalência do lírico sobre o narrativo implica, de antemão, um
questionamento orgânico sobre as estratégias freqüentes para a palavra
autobiografia.
Num primeiro momento, gostaria de
apontar que Drummond parte do princípio da dissimulação, melhor dizendo, da
ficcionalização do lírico. Para ele, o eu empírico não é o mesmo eu-lírico. Sua
poesia assim o atesta. Então, quando ele já se tornara um poeta consagrado pela
crítica e pelo público leitor, Drummond elege o gênero lírico como forma
apropriada para contar sua própria vida. Na contracorrente de seus pares (há
muitos poetas de sua geração que na mesma época igualmente se dedicam à
autobiografia, porém na “tradicional” narrativa), opta por uma escrita
fragmentada (por que em 413 poemas distintos, espalhados em três volumes), nem
sempre retrospectiva (pois em vários poemas ele abole a distância temporal
entre passado e presente), marcadamente lírica (da qual se percebe o fio
narrativo pelos títulos das seções e ao final de toda a leitura dos 413
poemas). Paradoxalmente, ele também tira partido da noção ingênua de que a
confissionalidade da lírica, aliada à “verdade” da autobiografia, devem ser
entendidas como construções ficcionais, ainda que em ambas se encontre uma
referência aos fatos e acontecimentos “reais” de sua vida. Do ponto de vista das teorias sobre o gênero
autobiográfico, a série “Boitempo”, do poeta brasileiro, antecipa em alguns
anos as questões hoje discutidas nos vários centros acadêmicos brasileiros.
Um desses aspectos refere-se ao
pacto de leitura, o pacto autobiográfico, como lhe chamou Lejeune em seu estudo
clássico, Le pacte autobiographique. Não
quero, neste momento, me alongar nestas questões teóricas, mas gostaria de
referir que as estratégias para convencer o leitor de uma determinada “verdade”
são inúmeras. A simples coincidência entre nome do autor, protagonista e
narrador é uma delas, mas isto apenas não basta.
É
preciso considerar que a palavra autobiográfica, ou qualquer nome que se queira
atribuir a ela, só é gerada pela reatualização de um complexo mito, o mito de
narciso. Do mito participam inúmeras questões que aparecem sistematicamente nos
textos autobiográficos. Uma dessas questões é a imagem que surge do original.
Posso chamar de eu e eu-outro. Para melhor exemplificar como isso se dá em
Drummond, gostaria de ler um poema especial. Chama-se “aquele córrego”
Tão alegre este
riacho.
Riacho? Gota d’água
em tacho
Nem necessita
pinguela
Oara chegar à outra
margem.
Um salto: salto a corrente.
É ribeirão de
presépio,
É mar de quem nunca
viu
O mar, nem prevê o
mar.
Tão festeiro, tão
brincante
De lambaris rabeando
Na transparência da
linfa.
Tão espelho, tão
pedrinhas
De luz chispante em
arestas.
Que nome ele tem? Não
tem
Nome nenhum, tão
miudinho.
Ele é. Pois é, qual
riacho
Qual nada. Ele é
mesmo corgo
Ou nem isso. É meu
desejo
De água que não me
afogue
E onde eu veja minha
imagem
Me descobrindo,
indagando:
Que menino é esse aí?
Que menino é este
aqui?
Não sei como
responder.
A agüinha treme,
trotina
Sob o calhau atirado
Por meu irmão. Ou por
mim?
Melhor é deixar o
corgo
Brincar de ser rio e
ir
Passeando lambaris.
Ainda que o poema reproduza um
determinado acontecimento da infância do poeta, o texto anuncia o mito de
narciso. Num primeiro momento, o poema localiza no tempo e no espaço um
instante de encantamento diante da água, rasa e cheia de lambaris. O pequeno
riacho, chamado de corgo, expressão mineira que significa um riacho mais
diminuto ainda, separa os irmãos que o saltam. As águas, mesmo rasas, espelham
o menino Carlos que na angústia de saber quem é, confunde-se com seu irmão que
está na outra margem. O espelho de água, na qual o menino se observa entre
indagante e temeroso, é subitamente destruído pela pedra jogada. Diante da
dúvida identitária, resta esquecer as dúvidas que brotam tanto da imagem especular quanto da
ação que interrompe a auto-fascinação. É curioso reparar como Drummond transita
entre o passado e o presente, anulando a distância temporal entre o “eu-lírico”
e o protagonista. No poema, é o menino quem fala, mas é o adulto quem organiza
os sentimentos e os pensamentos. As águas turvadas pela pedra dão o sinal da
insolubilidade, pois, uma vez criado o paradoxo identitário (quem é esse menino
aí? // quem é este menino aqui?) só resta o inocente descompromisso da
brincadeira em que o reino do faz-de-conta propõe a metamorfose do “corgo” em
rio. Assim, o eu-lírico permanece no mundo infantil, onde as perguntas são
respondidas na imediatez do momento.
Essa permanência no passado faz
lembrar os três pequenos poemas introdutórios dos livros. Funcionam como
epígrafes e também como advertência. Creio que o mais significativo para o
estabelecimento de um pacto autobiográfico seja “Intimação”, de “Boitempo III –
esquecer para lembrar”:
- você deve calar
urgentemente
As lembranças bobocas
de menino.
- impossível. Eu
conto o meu presente
Com volúpia voltei a
ser menino
Por
outro lado, este pequeno poema apensado no terceiro volume igualmente levanta
outras questões. Além de estabelecer uma identidade entre o “narrador” e o
protagonista, ou eu-atual e eu-do-passado, é possível perceber que ele propõe
ao leitor um universo mágico e misterioso – o seu tempo de menino. O poema se
espacializa através de um rápido e curtíssimo diálogo entre duas vozes
discordantes. A primeira ordena o silêncio e a segunda desconsidera a ordem,
propondo uma amálgama das duas vozes, a do adulto e a da criança, em um só
sujeito que irá reviver o passado. Este sentido é percebido pelo tempo de
declinação dos verbos: você deve (verso 1), eu conto (verso 3) e voltei (verso
4). O verso 04 – “Eu conto o meu presente” – remete a uma significação
específica de tempo atual, indicando que, pela escrita, ou pelo devaneio sobre
a infância, o poeta anula o desvio temporal entre passado e presente.
Gostaria, ainda, de referir que, não
obstante a construção de sua autobiografia pela poesia, Drummond tece um
princípio narrativo não usual. Este princípio narrativo está onipresente na
obra e toma forma na consideração do somatório de todos os poemas. A estrutura
circular da série dificulta, num primeiro momento, a visualização. Contudo, se
percebe que o poeta se conta a partir de uma retomada constante dos fatos, ou
melhor, das épocas de cada acontecimento. No primeiro volume, há uma divisão em
capítulos, que inicia com o primeiro deles referindo o tempo pretérito mais que
perfeito, ou seja, a chegada da família ao Brasil no século XVII; essa busca
genealógica vai muito além de uma mera localização temporal da família, porque
nos demais volumes, e em seqüência, as referências a esta época vão tomando
corpo e aumentando em número de peças poéticas.
Os assuntos tratados em “Boitempo”
vão, gradativamente, crescendo de volume a volume. A idéia é de que a memória,
ao ser provocada, vai recuperando suas imagens, refazendo sua história, movendo-se
em um tempo que vai sendo construído, aliando a horizontalidade (decurso de
tempo, com somatório de eventos e que, a rigor,é um dos elementos
característicos da narratividade) à circularidade (tempo mítico, vertical, no
qual o instante é privilegiado, pois é nele que a imagem surge como memória do
passado).
Para finalizar esta rápida
apresentação, gostaria de mencionar o mais espinhoso tema sobre as
autobiografias em geral. As relações das autobiografias com aquilo que se
conhece como “realidade propriamente dita”. Em Drummond, a relação com a
“verdade” estrita é tema de vários poemas ao longo de “Boitempo”. Um exemplo
interessante, no qual o poeta narra pequenos fatos de seu cotidiano, percebe-se
a sutileza do tema:
O pequeno cofre de ferro
(...)
Não fui eu ou fui eu?
Quem sabe mais de mim do que
meu dentro?
E meu dentro se cala
Omite seu obscuro julgamento
Deixando-me na dúvida
Dos crimes praticados por
meu fora
O poema, como um todo, conta um fato
na vida do menino Carlos acerca do roubo de um objeto, o pequeno cofre de
ferro. Numa franca alusão ao caráter camuflado das informações contidas no
objeto narrado, a transcrição parcial do poema acima revela o jogo entre o
dizer, isto é, o tornar público, e o calar, permanecendo no âmbito do privado.
O que é aquilo que não foi dito? A preservação da intimidade impõe a
necessidade da ficcionalização. Afinal, não se conta tudo.
Outro poema vai pelo mesmo caminho,
ou seja, partindo da duplicidade do ser, o eu-lírico deixa implícita a
imprescindível ficcionalização de si:
Casa e conduta
(...)
Sou
um ou outro
Móbil
caráter
Conforme
a luz
Que
me percorre
Ou
se reduz
(...)
Serei
os dois
No
exato instante
Em
que abro a porta,
Ainda
hesitantes
A
porta e eu?
Quem é o sujeito que se desenha e
que surge dos poemas de “Boitempo”? o poema acima pretende uma alternância
entre um e outro, cujas características, de acordo com a situação, pertencem ao
domínio ou do claro ou do escuro. Mas qual deles, parece o poeta se perguntar,
é real? A resposta é alentadora, ainda que não redutora: “Serei os dois”. Será
aquele que se esconde e também aquele que se mostra.
Ainda na mesma problematização, é
interessante observar como Drummond brinca com a “recriação” da sua história
familiar. Todos os três volumes iniciam por capítulos que se constituem de
poemas cujas assuntos são relativos aos seus ascendentes familiares.”Caminhar
de costas”, de “Boitempo”, “Pretérito mais que perfeito, de “Boitempo II”, e
“Bens e raiz” de “Boitempo III” são compostos de poemas cuja delimitação
espaço-temporal é o pretérito longínquo, indicando explicitamente a fabulação
na feitura das pequenas histórias.
Finalizando, ressalto que Drummond
percorre em sua autobiografia o seu “nascimento” como homem de letras. É isso o
que ele conta. O homem, que costumava ser chamado de Carlos Andrade na sua vida
privadíssima, esconde-se na figura do poeta, conhecido suficientemente como tal
em todo o país como Carlos Drummond. Não se furta, porém, de localizar suas
referências espaço-temporais, familiares, sociais, etc. a poesia que se
encontra em “Boitempo” percorre, dessa maneira, temas que o inauguram no mundo,
o fizeram nascer: as origens, o pai, a mãe, os irmãos, o sexo, a casa, o mundo.
Nasce, enfim, o poeta.
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