sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

carlos drummond e a poesia autobiográfica


(este texto foi apresentado sob forma de conferência em abril de 2011, na faculdade de filosofia e letras da universidade de córdoba, espanha)

Carlos Drummond de Andrade e a poesia autobiográfica
 
            Hoje em dia, muitas são as construções teoréticas para as escritas de um eu “real”, empírico, a quem o leitor imediatamente identifica ao nome do autor estampado na capa do livro. No Brasil, esta prática, isto é, o simulacro do eu sobre o simulacro da ficção, tem sido praticado com muito vigor desde os anos  90 do século passado, tendo se tornado, hoje em dia, uma prática muito recorrente. No entanto, alguns poetas modernistas se dedicaram, nos anos 60 e 70 à escrita autobiográfica. Os exemplos são abundantes, mas gostaria de nomear apenas um, talvez o mais conhecido fora do Brasil. Refiro-me a Carlos Drummond de Andrade. Sua obra poética se estende de 1930, com a publicação de “Alguma poesia”, até 1996, com “Farewell”, publicação póstuma. Começou a escrever poesia sob a influência direta do Modernismo Brasileiro, tendo passado por algumas fases, ou faces, as quais abarcam um período histórico marcado pela repressão política interna, passando pela Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria, preocupações socialistas, e inúmeras inovações técnico-formais na poesia.  Drummond, como o chamamos no Brasil,  nasceu em Itabira, cidade interiorana de Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902, e faleceu em 1987, no Rio, uma semana após a morte da única filha.
            Como é poeta de largo fôlego, sinto dificuldades em restringir minha proposta de leitura para este encontro. Então, de acordo com o tema – autobiografia – vou me ater à sua, chamada de “Boitempo”, um neologismo que junta dois substantivos: “boi”, característico da mansidão e do ato de ruminar (mastigar e re-mastigar o alimento); e “tempo”, cujo significado todos conhecemos, e que na composição de Drummond está intrinsecamente atrelado ao tempo passado. A autobiografia de Drummond é composta por três volumes de poesia: “Boitempo”, “Menino antigo” e “Esquecer para lembrar”, publicados em 1968, 1973 e 1979 respectivamente. Gostaria de lembrar, neste momento, que quando se fala em “autobiografia” e correlatos, geralmente a associamos a um complexo narrativo que alguém faz de sua própria vida. O caráter narrativo de tais textos parece estar, de uma forma ou de outra, tácito entre autor e leitor. Bem, Drummond, nos longínquos anos de 68, no Brasil, parece que intuindo a “fórmula” de Lejeune, antecipadamente rompe com aquele famoso quadro dogmático que Lejeune propôs em 1975: “narrativa retrospectiva em prosa”.
             Posso dizer que se trata de reafirmar uma atitude prenunciada no seu primeiro poema – “poema de sete faces”, de 1930 – cuja primeira estrofe diz o seguinte: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai Carlos! Ser gauche na vida (...). O “gauche” não é mera figura de retórica, porque, ao longo de sua obra poética, ele encarnou a diferença como marca identitária. Então, sua autobiografia seria necessariamente escrita em outra forma, que não a tradicional narrativa. Mas, curiosamente, ao longo de sua vida, ele manteve um diário, intitulado “O observador no escritório”, sobre o qual, por questões de tempo, não farei referência. Na série “Boitempo”, sua vida é “narrada” por uma voz enunciativa que algumas vezes se mostra em sujeito poético e em outras em eu-lírico. Há, por certo, um fio narrativo, porém perceptível apenas ao final da leitura dos três volumes.  A autobiografia de Drummond é composta por Boitempo – 84 poemas; Menino antigo – 128 poemas; e Esquecer para lembrar – 201 poemas. Dessa forma, a figura usual do autobiógrafo sofre algumas alterações. A escolha da prevalência do lírico sobre o narrativo implica, de antemão, um questionamento orgânico sobre as estratégias freqüentes para a palavra autobiografia.

            Num primeiro momento, gostaria de apontar que Drummond parte do princípio da dissimulação, melhor dizendo, da ficcionalização do lírico. Para ele, o eu empírico não é o mesmo eu-lírico. Sua poesia assim o atesta. Então, quando ele já se tornara um poeta consagrado pela crítica e pelo público leitor, Drummond elege o gênero lírico como forma apropriada para contar sua própria vida. Na contracorrente de seus pares (há muitos poetas de sua geração que na mesma época igualmente se dedicam à autobiografia, porém na “tradicional” narrativa), opta por uma escrita fragmentada (por que em 413 poemas distintos, espalhados em três volumes), nem sempre retrospectiva (pois em vários poemas ele abole a distância temporal entre passado e presente), marcadamente lírica (da qual se percebe o fio narrativo pelos títulos das seções e ao final de toda a leitura dos 413 poemas). Paradoxalmente, ele também tira partido da noção ingênua de que a confissionalidade da lírica, aliada à “verdade” da autobiografia, devem ser entendidas como construções ficcionais, ainda que em ambas se encontre uma referência aos fatos e acontecimentos “reais” de sua vida.  Do ponto de vista das teorias sobre o gênero autobiográfico, a série “Boitempo”, do poeta brasileiro, antecipa em alguns anos as questões hoje discutidas nos vários centros acadêmicos brasileiros.
            Um desses aspectos refere-se ao pacto de leitura, o pacto autobiográfico, como lhe chamou Lejeune em seu estudo clássico, Le pacte autobiographique. Não quero, neste momento, me alongar nestas questões teóricas, mas gostaria de referir que as estratégias para convencer o leitor de uma determinada “verdade” são inúmeras. A simples coincidência entre nome do autor, protagonista e narrador é uma delas, mas isto apenas não basta.
É preciso considerar que a palavra autobiográfica, ou qualquer nome que se queira atribuir a ela, só é gerada pela reatualização de um complexo mito, o mito de narciso. Do mito participam inúmeras questões que aparecem sistematicamente nos textos autobiográficos. Uma dessas questões é a imagem que surge do original. Posso chamar de eu e eu-outro. Para melhor exemplificar como isso se dá em Drummond, gostaria de ler um poema especial. Chama-se “aquele córrego”


Tão alegre este riacho.
Riacho? Gota d’água em tacho
Nem necessita pinguela
Oara chegar à outra margem.
Um salto: salto a corrente.
É ribeirão de presépio,
É mar de quem nunca viu
O mar, nem prevê o mar.

Tão festeiro, tão brincante
De lambaris rabeando
Na transparência da linfa.
Tão espelho, tão pedrinhas
De luz chispante em arestas.
Que nome ele tem? Não tem
Nome nenhum, tão miudinho.

Ele é. Pois é, qual riacho
Qual nada. Ele é mesmo corgo
Ou nem isso. É meu desejo
De água que não me afogue
E onde eu veja minha imagem
Me descobrindo, indagando:
Que menino é esse aí?

Que menino é este aqui?
Não sei como responder.
A agüinha treme, trotina
Sob o calhau atirado
Por meu irmão. Ou por mim?
Melhor é deixar o corgo
Brincar de ser rio e ir
Passeando lambaris.


            Ainda que o poema reproduza um determinado acontecimento da infância do poeta, o texto anuncia o mito de narciso. Num primeiro momento, o poema localiza no tempo e no espaço um instante de encantamento diante da água, rasa e cheia de lambaris. O pequeno riacho, chamado de corgo, expressão mineira que significa um riacho mais diminuto ainda, separa os irmãos que o saltam. As águas, mesmo rasas, espelham o menino Carlos que na angústia de saber quem é, confunde-se com seu irmão que está na outra margem. O espelho de água, na qual o menino se observa entre indagante e temeroso, é subitamente destruído pela pedra jogada. Diante da dúvida identitária, resta esquecer as dúvidas que  brotam tanto da imagem especular quanto da ação que interrompe a auto-fascinação. É curioso reparar como Drummond transita entre o passado e o presente, anulando a distância temporal entre o “eu-lírico” e o protagonista. No poema, é o menino quem fala, mas é o adulto quem organiza os sentimentos e os pensamentos. As águas turvadas pela pedra dão o sinal da insolubilidade, pois, uma vez criado o paradoxo identitário (quem é esse menino aí? // quem é este menino aqui?) só resta o inocente descompromisso da brincadeira em que o reino do faz-de-conta propõe a metamorfose do “corgo” em rio. Assim, o eu-lírico permanece no mundo infantil, onde as perguntas são respondidas na imediatez do momento.

            Essa permanência no passado faz lembrar os três pequenos poemas introdutórios dos livros. Funcionam como epígrafes e também como advertência. Creio que o mais significativo para o estabelecimento de um pacto autobiográfico seja “Intimação”, de “Boitempo III – esquecer para lembrar”:



- você deve calar urgentemente

As lembranças bobocas de menino.

- impossível. Eu conto o meu presente

Com volúpia voltei a ser menino



            Por outro lado, este pequeno poema apensado no terceiro volume igualmente levanta outras questões. Além de estabelecer uma identidade entre o “narrador” e o protagonista, ou eu-atual e eu-do-passado, é possível perceber que ele propõe ao leitor um universo mágico e misterioso – o seu tempo de menino. O poema se espacializa através de um rápido e curtíssimo diálogo entre duas vozes discordantes. A primeira ordena o silêncio e a segunda desconsidera a ordem, propondo uma amálgama das duas vozes, a do adulto e a da criança, em um só sujeito que irá reviver o passado. Este sentido é percebido pelo tempo de declinação dos verbos: você deve (verso 1), eu conto (verso 3) e voltei (verso 4). O verso 04 – “Eu conto o meu presente” – remete a uma significação específica de tempo atual, indicando que, pela escrita, ou pelo devaneio sobre a infância, o poeta anula o desvio temporal entre passado e presente.

            Gostaria, ainda, de referir que, não obstante a construção de sua autobiografia pela poesia, Drummond tece um princípio narrativo não usual. Este princípio narrativo está onipresente na obra e toma forma na consideração do somatório de todos os poemas. A estrutura circular da série dificulta, num primeiro momento, a visualização. Contudo, se percebe que o poeta se conta a partir de uma retomada constante dos fatos, ou melhor, das épocas de cada acontecimento. No primeiro volume, há uma divisão em capítulos, que inicia com o primeiro deles referindo o tempo pretérito mais que perfeito, ou seja, a chegada da família ao Brasil no século XVII; essa busca genealógica vai muito além de uma mera localização temporal da família, porque nos demais volumes, e em seqüência, as referências a esta época vão tomando corpo e aumentando em número de peças poéticas.

            Os assuntos tratados em “Boitempo” vão, gradativamente, crescendo de volume a volume. A idéia é de que a memória, ao ser provocada, vai recuperando suas imagens, refazendo sua história, movendo-se em um tempo que vai sendo construído, aliando a horizontalidade (decurso de tempo, com somatório de eventos e que, a rigor,é um dos elementos característicos da narratividade) à circularidade (tempo mítico, vertical, no qual o instante é privilegiado, pois é nele que a imagem surge como memória do passado).

            Para finalizar esta rápida apresentação, gostaria de mencionar o mais espinhoso tema sobre as autobiografias em geral. As relações das autobiografias com aquilo que se conhece como “realidade propriamente dita”. Em Drummond, a relação com a “verdade” estrita é tema de vários poemas ao longo de “Boitempo”. Um exemplo interessante, no qual o poeta narra pequenos fatos de seu cotidiano, percebe-se a sutileza do tema:

            O pequeno cofre de ferro

(...)

Não fui eu ou fui eu?

Quem sabe mais de mim do que meu dentro?

E meu dentro se cala

Omite seu obscuro julgamento

Deixando-me na dúvida

Dos crimes praticados por meu fora

            O poema, como um todo, conta um fato na vida do menino Carlos acerca do roubo de um objeto, o pequeno cofre de ferro. Numa franca alusão ao caráter camuflado das informações contidas no objeto narrado, a transcrição parcial do poema acima revela o jogo entre o dizer, isto é, o tornar público, e o calar, permanecendo no âmbito do privado. O que é aquilo que não foi dito? A preservação da intimidade impõe a necessidade da ficcionalização. Afinal, não se conta tudo.

            Outro poema vai pelo mesmo caminho, ou seja, partindo da duplicidade do ser, o eu-lírico deixa implícita a imprescindível ficcionalização de si:

            Casa e conduta

(...)

Sou um ou outro

Móbil caráter

Conforme a luz

Que me percorre

Ou se reduz

(...)

Serei os dois

No exato instante

Em que abro a porta,

Ainda hesitantes

A porta e eu?

            Quem é o sujeito que se desenha e que surge dos poemas de “Boitempo”? o poema acima pretende uma alternância entre um e outro, cujas características, de acordo com a situação, pertencem ao domínio ou do claro ou do escuro. Mas qual deles, parece o poeta se perguntar, é real? A resposta é alentadora, ainda que não redutora: “Serei os dois”. Será aquele que se esconde e também aquele que se mostra.

            Ainda na mesma problematização, é interessante observar como Drummond brinca com a “recriação” da sua história familiar. Todos os três volumes iniciam por capítulos que se constituem de poemas cujas assuntos são relativos aos seus ascendentes familiares.”Caminhar de costas”, de “Boitempo”, “Pretérito mais que perfeito, de “Boitempo II”, e “Bens e raiz” de “Boitempo III” são compostos de poemas cuja delimitação espaço-temporal é o pretérito longínquo, indicando explicitamente a fabulação na feitura das pequenas histórias.

            Finalizando, ressalto que Drummond percorre em sua autobiografia o seu “nascimento” como homem de letras. É isso o que ele conta. O homem, que costumava ser chamado de Carlos Andrade na sua vida privadíssima, esconde-se na figura do poeta, conhecido suficientemente como tal em todo o país como Carlos Drummond. Não se furta, porém, de localizar suas referências espaço-temporais, familiares, sociais, etc. a poesia que se encontra em “Boitempo” percorre, dessa maneira, temas que o inauguram no mundo, o fizeram nascer: as origens, o pai, a mãe, os irmãos, o sexo, a casa, o mundo. Nasce, enfim, o poeta.


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