quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

apontamentos para aula sobre clarice lispector


             Sobre Clarice Lispector: A hora da estrela / Laços de família
[este texto foi apresentado no seminário Cinema & vídeo, organizado pela profa. eliane campello, na FURG; na seqüênia estão alguns apontamentos sobre a obra da clarice lispector para uma aula expositiva]
 

             A hora da estrela, última narrativa publicada em vida da autora, parece ser uma espécie de legado final de sua escritura. Nesta “novela”, como a própria Clarice a designava, há a possibilidade de se proceder a diversas abordagens sobre o texto, mas o propósito deste encontro refere-se à ligação intrínseca entre a narrativa propriamente dita e a obra fílmica dela originada. Vamos, então, tentar uma aproximação entre ambos discursos com o inevitável peso de importância sobre o romance, já que o filme nasce dele é basicamente com ele que trabalhamos no universo da Literatura Brasileira.

            O argumento do texto parece, em princípio, bastante simples. Trata-se de uma narrativa composta por dois universos diegéticos, em que do primeiro surge o segundo. Ou seja, a partir de questões metaliterárias, deparamo-nos com a angústia de Rodrigo SM, escritor profissional, que se debate constantemente entre o fazer literário e suas necessidades e conseqüências. O motivo de seus transtornos faz gerar a estória de uma moça nordestina completamente sem atrativos a não ser sua imensa capacidade de provocar repulsa e desprezo.

            É bom lembrarmos, neste momento, de algumas das características mais marcantes da escritura de Lispector. De maneira geral, podemos dizer que seus textos abolem a ação exterior, em que quase não há enredo. Desta forma, a autora privilegia a busca psicológica de caracteres que se desintegram e de consciências que são surpreendidas no fluxo das idéias. Estes elementos, a rigor, conferem um certo sentido lento à narrativa, em franca oposição ao ritmo mais rápido do espaço urbano onde se desenrolam as estórias clariceanas. Portanto, é fácil observarmos que os textos da autora não suportam a condição da oralidade, isto é, dificilmente conseguimos “contar” uma estória de Clarice Lispector. No mais das vezes, conseguimos fazer referências a certas atitudes das personagens ou de seus dramas interiores. Por exemplo: do romance Paixão segundo GH, normalmente evidenciamos o episódio em que a protagonista engole a gosma branca da barata, mas dificilmente somos capazes de reproduzir oralmente o processo de interiorização e de epifania vivenciado por GH.

Estes posicionamentos, ou melhor, estas características tipicamente de Lispector estão também presentes em A hora da estrela, mas há, neste último texto deliberadamente publicado, um aspecto que não se vê em seus outros romances e que sempre foi motivo de discussão pela crítica, digamos, engajada política e socialmente. Ainda que parcamente, esta pequena narrativa apresenta uma diegese em que há enredo e que permite ser contado. O filme, de Suzana Amaral, justamente, transfere a este universo diegético o cerne da obra. Macabéa e seus companheiros de fortuna e infortúnio são alçados, pela lente da diretora, ao patamar de maior importância. No filme, Rodrigo SM esfumaça-se na lente da câmera e mal deixa rastro. Perde-se, com isso, muito da problemática central do texto. Ou seja, em detrimento de uma temática mais “intelectualizada”, ainda que inteiramente pertinente, a cineasta Suzana Amaral trata de situações sócio-econômicas com relação aos inúmeros imigrantes nordestinos que chegam ao Rio de Janeiro e que acabam por se submeter a uma vida marginalizada.

No caso de Macabéa há, entretanto, uma visão feminina que governa a câmera. O final apoteótico preconizado pelo narrador Rodrigo SM, no romance, aqui assumirá foros de estrela de cinema. A personagem encontrar-se-á com a morte toda vestida de azul, cabelos soltos e esvoaçantes e correrá em direção a uma figura masculina que nada mais é do que a representação estereotipada do modelo de homem europeu-príncipe encantado.

            Mas voltemos ao texto clariceano. O romance é elaborado a partir de duas diegeses que acabam por se misturar nos momentos finais da narrativa. De um lado, e primeiramente, surge a figura de um narrador/escritor chamado Rodrigo SM. Sua grande preocupação é a busca ontológica do ato de narrar, o que não o abstém, por outro lado, do  tema do duplo como elemento também recorrente no romance.

Dentro do emaranhado de idéias que Rodrigo SM explora e de posições que refuta, quanto ao processo metaliterário, este narrador assume que escrever é a própria vida. Dessa forma, sua pergunta constante é por que escrevo? Inúmeras são as respostas dadas, mas nenhuma o satisfaz, posto que no início de sua aventura ontológica, já assevera a essência mesma de sua escrita: Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Interessante notarmos que o lugar da palavra é o mesmo da “coisa” fundante. A palavra, para Rodrigo SM, é aquela que preside o ato de criação, a existência, a própria vida. Em oposição, o silêncio é a morte.

            Contudo, o narrador enuncia que ela, a morte, é que é sua personagem preferida. Este é um dos estranhos limites, isto é, paradoxos que a obra de Lispector persegue. Um tênue fio que separa a fala do silêncio; a criação, do nada. Macabéa praticamente não fala e quando o faz, pede desculpas intermináveis e descabidas ou pergunta coisas absurdas e sem sentido.

            De outro lado, a tematização do duplo se dá em níveis um tanto quanto sutis e por referências esporádicas, as quais passam como apontamentos deste narrador perturbado: (Vai ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus ...). Sintomaticamente, é a partir deste ponto no romance que a segunda diegese realmente começa e que também dá início à história transcrita no filme.

            Entretanto, este jogo de peças[1] começa a ser remontado quando reabrimos o pequeno volume que é A hora da estrela e nos deparamos com a Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector). Há, aqui, uma relação circular que se interpõe em toda a malha textual. O tecido narrativo começa com um “sim”: Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. A palavra final do romance é sim. Este procedimento é, ao nosso ver, uma conseqüência daquele que o preside.

Trata-se, em verdade, da junção de dois dos grandes temas da contemporaneidade ou do que vulgarmente se chama de Pós-modernidade. O projeto de metaliteratura se soma à tematização do duplo, que, por sua vez, neste texto de Lispector, enlaça seus dois sentidos, ou seja, o duplo como descoberta de si e o duplo como anunciador da morte[2]; esta também bifacial. Como vemos, o texto clariceano é uma malha na qual se cruzam diversos fios e que é impossível, pelo entrelaçamento já firmado, é impossível dissociá-los.

De qualquer forma, é lícito propormos uma leitura que não perca de vista este horizonte: o metaliterário que se compõe a partir do duplo e vice-e-versa.

O que vemos, então, é uma situação complexa e instigante entre instâncias da criação literária. Esta troca, ou melhor dizendo, esta construção pelo híbrido no processo de composição da voz narrativa encontra respaldo já nos contos de Edgar Allan Poe[3], mas nossa autora o faz com tamanha perspicácia e ironia que nos encanta. Para este aspecto, em particular, a ironia fica por conta de uma parte da crítica brasileira que atribui um pretenso engajamento de Lispector na literatura “feminista”. Explicamos melhor: os dois últimos textos da autora que foram escritos concomitantemente e dados como prontos para publicação, A hora da estrela e Sopro de vida, foram elaborados a partir de um narrador homem que, a pretexto da própria literatura, inventa uma protagonista mulher. Ironicamente, trata-se da negação de si mesma, já que a mulher lacrimeja piegas e a autora é Clarice Lispector, uma mulher.

A posição entrelaçada destas entidades ficcionais, a voz autoral, a voz narrativa e a (parca) voz da protagonista, geram, na verdade, um estilhaçamento e desmascaramento da ficção. Isto se dá na medida em que uma entidade atribui a outra a sua existência, escapando deste círculo de autoconsciência apenas a personagem Macabéa, que não tinha noção de si no mundo. Ou seja, a cadeia de identificação proposta pelo texto é: Rodrigo SM, narrador, cria a protagonista Macabéa e através dela se auto-questiona acerca do seu fazer literário e de si mesmo; faz-se, portanto, não apenas narrador, mas igualmente personagem de um universo diegético paralelo ao de sua protagonista.

Entretanto, na Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector) deparamo-nos com uma outra cadeia de identificação em que o narrador Rodrigo SM é produto explicitamente ficcional da autora conhecida, Clarice Lispector. O jogo de esconde, ou melhor dizendo, o jogo de criar ilusões de realidades tipicamente do fazer literário, é implodido pela autora no momento em que resolve  expor esta relação de dependência e de intenso envolvimento. Atribuindo a Rodrigo SM uma identidade que, a rigor, lhe pertence, a autora instaura a mobilidade e a oscilação da voz autoral, por conseqüência do seu produto. Desmascarando o processo de ficção, pela técnica do mise en abime, tão bem representada na pintura do espanhol Velásquez, Lispector provoca o esvaziamento da identidade do ser. Quem é este narrador Rodrigo SM? É, na verdade Clarice Lispector? Não há interesse em uma resposta única e incontestável. Como Machado de Assis, em Dom Casmurro, a dúvida é elemento gerador de vida e escrever é o grande mote para viver.

Esta parece ser a grande ponte que liga a estrutura composicional do texto à personagem preferida do narrador Rodrigo SM, isto é, a morte, já que no esvaziamento da identidade está implicado um sentido destrutivo próximo ao sentido de morte, que é a própria destruição, que é o silêncio – ausência de palavra.

Por fim, gostaríamos de tratar rapidamente de um dos temas preferidos da autora (e também do narrador Rodrigo SM), isto é, o tema da morte, tão recorrente em sua obra. Através da metafísica, a obra clariceana sempre enfrentou a morte. Esta, via de regra, apresenta-se sob dois aspectos. De um lado, Lispector tratou-a na acepção de “morte em vida”, em que suas personagens, no mais das vezes, percebiam a destruição do eu pela intensa solidão humana e pela separação amorosa.

De outro lado, a autora também falou da morte no sentido literal, momento em que as personagens encontravam a sua feminilidade e sua autoconsciência. O texto, através da voz de Rodrigo SM, explora bem este sentido. A  posição fetal da protagonista, a explícita declaração de gozo e de sensualidade e a passagem de virgem a mulher na hora da morte dão bem esta dimensão. Este aspecto abre caminho para uma perspectiva que liga esta personagem preferida, a morte, a um corpo de eroticidade intensa e de paradoxal continuidade: Quanto a mim, substituo o ato da morte por um seu símbolo. Símbolo este que pode se resumir num profundo beijo mas não na parede áspera e sim boca-a-boca na agonia do prazer que é a morte. Eu, que simbolicamente morro várias vezes só para experimentar a ressurreição.

Estas duas vertentes para o tema da morte surgem, em A hora da estrela, de forma entrelaçada e vivenciada pela mesma personagem Macabéa: momento final do texto que privilegia estas duas perspectivas e uma terceira, que propõe a continuidade do ato da vida. A morte literal de Macabéa se dá na época de morangos, estação de renovação da vida, primavera. Entretanto, retomando a obra fílmica, estes elementos são descartados em função de um efetivo “gran finale”, como prometia o narrador Rodrigo SM, em que a hora da estrela Macabéa finalmente luziu.

 

 

-          CRISE DA LINHA REALISTA de 30

-          Ritmo lento  X  ritmo rápido das cidades ---- literatura urbana

                                                                                   è literatura “rural” de Rosa

 

-          proposição: fazer revelações, acordar os sentimentos

 

- quase ausência de enredo

            è ação exterior é abolida ----- pensamento metafísico

è         - momento que se arrasta

è         - busca psicológica de caracteres que se desintegram

è         - consciências surpreendidas no fluxo das idéias

 

-          interesses da autora: paixão, inquietação, existência metafísica

 

-          textos não suportam a oralidade

 

sobre A HORA DA ESTRELA:

 

I-                   narrador: condição do ser humano

II-                 universo de Macabéa = nordestina --- aspecto social perpassado pela ironia, desprezo --- desejo de ser o contrário (como indica o título na acepção mais comum)

III-              retomada da I com o desvendamento da morte

 

-          temas do narrador:

  • ironia
  • busca de si pela alteridade com Macabéa
  • a linguagem como fundadora de vida [ a morte é erótica – Bataille ]
  • problemática social no Brasil

 

--- hora da estrela == hora da morte

                              è narrador morre com Macabéa

                                      è vida = palavra ; sem palavra --- morte

 

-          segundo o narrador:

a)      fábula: registro de fatos sobre a vidinha de Macabéa – não é

b)      tempo deve ser cronológico e linear – não é

c)      personagens: ele diz que serão sete; tia morta / Glória / Olímpico de Jesus / Seu Raimundo / as três Marias (colegas de quarto) / Macabéa / médico / cartomante / rico da mercedez que a mata / a própria morte == 12 personagens

d)      espaço: cidade grande, Rio de Janeiro, mas não é.

 

-          duas diegeses:

i.                    vida e história de Macabéa - literatura

ii.                  questionamento cartesiano do narrador - metaliteratura

 

 

Aula 16

Sobre Clarice Lispector e Laços de família

(1925 / 1977)

 

-          Perto do coração selvagem

-          O lustre

-          Laços de família

-          A legião estrangeira

-          A paixão segundo G.H.

-          Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

-          Felicidade clandestina

-          A hora da estrela

-          Um sopro de vida

                                           ßÞ   registro do processo de aprisionamento dos indivíduos através dos laços familiares e da prisão doméstica

 

 

- Perto do coração selvagem:    (1944) tema ------ processo de escrita

                                                                                      |

                                                        crítica aos padrões da época: metaliteratura

 

- narrativas de ritmo lento (interior )       X          ritmo acelerado das cidades (externo)

 

-          escritura que se propõe como epifania: auto-exame provocado por fatores externos

                                                        |

                                 ( acontecimento ou incidente que ilumina a vida da personagem)

1.      personagem colocada numa situação cotidiana

2.      preparação do evento que é pressentido

3.      ocorre o evento que ilumina a vida

4.      desfecho, onde se considera a situação da personagem

                                           ßÞ mudança de comportamento

                                                                   ou

                                                   retorno à normalidade anterior

 

- tempo: presente   /    e na cidade (urbana)

 

- ação: não há enredo --------ação exterior é abolida em favor do momento que se arrasta

                     |                         da busca psicológica de caracteres que se desintegram

                     |                         das consciências surpreendidas no fluxo das idéias

                     |

            narrativas monocêntricas -------- problema: consciência individual

                      è

                          as personagens parecem ser sempre as mesmas: apresentam-se

                                                                     problematizadas sob o mesmo signo da

                                                                     existência

 

- temas preferenciais:     paixão que domina as personagens

                                       inquietação que as conduz

                                       existência que as subjuga

                                                    ßÞ   consciência lúcida de frustração

                                                              impossibilidade de uma vida plena

 

-          não-oralidade: impossibilidade de reprodução de seus textos, pois não há enredo

 

- limitação da palavra: incapacidade de significação total [ convulsão do signo ]

                                               è     

                                                   uso de símbolos conceituais: ovo / barata / espelho

 

- laços de família ( 1960)

è         registro do processo de aprisionamento dos indivíduos através dos laços

familiares e da prisão doméstica

 

 

 



[1] Segundo informações da crítica que também trabalha com elementos biográficos, e depoimentos de Olga Borelli, Clarice Lispector escreveu dois textos concomitantemente: A hora da estrela e Um sopro de vida. Ambos textos foram compostos a partir de fragmentos que posteriormente foram selecionados e organizados para a composição dos respectivos romances.
[2] Jorge Luis Borges, num texto intitulado O duplo, disserta sobre estas duas acepções do tema do duplo, postulando duas genealogias: uma de origem escocesa, outra oriunda da Alemanha.
[3] Segundo ensaio Entrando no bosque in ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

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