Sobre
Clarice Lispector: A hora da estrela / Laços de família
[este texto foi apresentado no seminário Cinema & vídeo, organizado pela profa. eliane campello, na FURG; na seqüênia estão alguns apontamentos sobre a obra da clarice lispector para uma aula expositiva]
A hora da estrela, última narrativa
publicada em vida da autora, parece ser uma espécie de legado final de sua
escritura. Nesta “novela”, como a própria Clarice a designava, há a
possibilidade de se proceder a diversas abordagens sobre o texto, mas o
propósito deste encontro refere-se à ligação intrínseca entre a narrativa
propriamente dita e a obra fílmica dela originada. Vamos, então, tentar uma
aproximação entre ambos discursos com o inevitável peso de importância sobre o
romance, já que o filme nasce dele é basicamente com ele que trabalhamos no
universo da Literatura Brasileira.
O argumento do texto parece, em princípio, bastante
simples. Trata-se de uma narrativa composta por dois universos diegéticos, em
que do primeiro surge o segundo. Ou seja, a partir de questões metaliterárias,
deparamo-nos com a angústia de Rodrigo SM, escritor profissional, que se debate
constantemente entre o fazer literário e suas necessidades e conseqüências. O
motivo de seus transtornos faz gerar a estória de uma moça nordestina completamente
sem atrativos a não ser sua imensa capacidade de provocar repulsa e desprezo.
É bom lembrarmos, neste momento, de algumas das
características mais marcantes da escritura de Lispector. De maneira geral,
podemos dizer que seus textos abolem a ação exterior, em que quase não há
enredo. Desta forma, a autora privilegia a busca psicológica de caracteres que
se desintegram e de consciências que são surpreendidas no fluxo das idéias.
Estes elementos, a rigor, conferem um certo sentido lento à narrativa, em franca
oposição ao ritmo mais rápido do espaço urbano onde se desenrolam as estórias
clariceanas. Portanto, é fácil observarmos que os textos da autora não suportam
a condição da oralidade, isto é, dificilmente conseguimos “contar” uma estória
de Clarice Lispector. No mais das vezes, conseguimos fazer referências a certas
atitudes das personagens ou de seus dramas interiores. Por exemplo: do romance Paixão segundo GH, normalmente
evidenciamos o episódio em que a protagonista engole a gosma branca da barata,
mas dificilmente somos capazes de reproduzir oralmente o processo de
interiorização e de epifania vivenciado por GH.
Estes
posicionamentos, ou melhor, estas características tipicamente de Lispector
estão também presentes em A hora da
estrela, mas há, neste último texto deliberadamente publicado, um aspecto
que não se vê em seus outros romances e que sempre foi motivo de discussão pela
crítica, digamos, engajada política e socialmente. Ainda que parcamente, esta
pequena narrativa apresenta uma diegese em que há enredo e que permite ser
contado. O filme, de Suzana Amaral, justamente, transfere a este universo
diegético o cerne da obra. Macabéa e seus companheiros de fortuna e infortúnio
são alçados, pela lente da diretora, ao patamar de maior importância. No filme,
Rodrigo SM esfumaça-se na lente da câmera e mal deixa rastro. Perde-se, com
isso, muito da problemática central do texto. Ou seja, em detrimento de uma
temática mais “intelectualizada”, ainda que inteiramente pertinente, a cineasta
Suzana Amaral trata de situações sócio-econômicas com relação aos inúmeros
imigrantes nordestinos que chegam ao Rio de Janeiro e que acabam por se
submeter a uma vida marginalizada.
No
caso de Macabéa há, entretanto, uma visão feminina que governa a câmera. O
final apoteótico preconizado pelo narrador Rodrigo SM, no romance, aqui
assumirá foros de estrela de cinema. A personagem encontrar-se-á com a morte
toda vestida de azul, cabelos soltos e esvoaçantes e correrá em direção a uma
figura masculina que nada mais é do que a representação estereotipada do modelo
de homem europeu-príncipe encantado.
Mas voltemos ao texto clariceano. O romance é elaborado a
partir de duas diegeses que acabam por se misturar nos momentos finais da
narrativa. De um lado, e primeiramente, surge a figura de um narrador/escritor
chamado Rodrigo SM. Sua grande preocupação é a busca ontológica do ato de
narrar, o que não o abstém, por outro lado, do
tema do duplo como elemento também recorrente no romance.
Dentro
do emaranhado de idéias que Rodrigo SM explora e de posições que refuta, quanto
ao processo metaliterário, este narrador assume que escrever é a própria vida.
Dessa forma, sua pergunta constante é por
que escrevo? Inúmeras são as respostas dadas, mas nenhuma o satisfaz, posto
que no início de sua aventura ontológica, já assevera a essência mesma de sua
escrita: Enquanto eu tiver perguntas e
não houver resposta continuarei a escrever. Interessante notarmos que o
lugar da palavra é o mesmo da “coisa” fundante. A palavra, para Rodrigo SM, é
aquela que preside o ato de criação, a existência, a própria vida. Em oposição,
o silêncio é a morte.
Contudo, o narrador enuncia que ela, a morte, é que é sua
personagem preferida. Este é um dos estranhos limites, isto é, paradoxos que a
obra de Lispector persegue. Um tênue fio que separa a fala do silêncio; a
criação, do nada. Macabéa praticamente não fala e quando o faz, pede desculpas
intermináveis e descabidas ou pergunta coisas absurdas e sem sentido.
De outro lado, a tematização do duplo se dá em níveis um
tanto quanto sutis e por referências esporádicas, as quais passam como
apontamentos deste narrador perturbado: (Vai
ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça,
terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus ...).
Sintomaticamente, é a partir deste ponto no romance que a segunda diegese
realmente começa e que também dá início à história transcrita no filme.
Entretanto, este jogo de peças[1]
começa a ser remontado quando reabrimos o pequeno volume que é A hora da estrela e nos deparamos com a
Dedicatória do autor (Na verdade Clarice
Lispector). Há, aqui, uma relação circular que se interpõe em toda a malha
textual. O tecido narrativo começa com um “sim”: Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra
molécula e nasceu a vida. A palavra final do romance é sim. Este procedimento é, ao nosso ver, uma conseqüência daquele
que o preside.
Trata-se,
em verdade, da junção de dois dos grandes temas da contemporaneidade ou do que
vulgarmente se chama de Pós-modernidade. O projeto de metaliteratura se soma à
tematização do duplo, que, por sua vez, neste texto de Lispector, enlaça seus
dois sentidos, ou seja, o duplo como descoberta de si e o duplo como anunciador
da morte[2];
esta também bifacial. Como vemos, o texto clariceano é uma malha na qual se
cruzam diversos fios e que é impossível, pelo entrelaçamento já firmado, é
impossível dissociá-los.
De qualquer forma, é lícito propormos
uma leitura que não perca de vista este horizonte: o metaliterário que se
compõe a partir do duplo e vice-e-versa.
O que
vemos, então, é uma situação complexa e instigante entre instâncias da criação
literária. Esta troca, ou melhor dizendo, esta construção pelo híbrido no
processo de composição da voz narrativa encontra respaldo já nos contos de
Edgar Allan Poe[3], mas
nossa autora o faz com tamanha perspicácia e ironia que nos encanta. Para este
aspecto, em particular, a ironia fica por conta de uma parte da crítica
brasileira que atribui um pretenso engajamento de Lispector na literatura
“feminista”. Explicamos melhor: os dois últimos textos da autora que foram
escritos concomitantemente e dados como prontos para publicação, A hora da estrela e Sopro de vida, foram elaborados a
partir de um narrador homem que, a pretexto da própria literatura, inventa uma
protagonista mulher. Ironicamente, trata-se da negação de si mesma, já que a
mulher lacrimeja piegas e a autora é
Clarice Lispector, uma mulher.
A posição entrelaçada destas
entidades ficcionais, a voz autoral, a voz narrativa e a (parca) voz da
protagonista, geram, na verdade, um estilhaçamento e desmascaramento da ficção.
Isto se dá na medida em que uma entidade atribui a outra a sua existência,
escapando deste círculo de autoconsciência apenas a personagem Macabéa, que não
tinha noção de si no mundo. Ou seja, a cadeia de identificação proposta pelo
texto é: Rodrigo SM, narrador, cria a protagonista Macabéa e através dela se
auto-questiona acerca do seu fazer literário e de si mesmo; faz-se, portanto,
não apenas narrador, mas igualmente personagem de um universo diegético
paralelo ao de sua protagonista.
Entretanto,
na Dedicatória do autor (Na verdade
Clarice Lispector) deparamo-nos com uma outra cadeia de identificação em
que o narrador Rodrigo SM é produto explicitamente ficcional da autora
conhecida, Clarice Lispector. O jogo de esconde, ou melhor dizendo, o jogo de
criar ilusões de realidades tipicamente do fazer literário, é implodido pela
autora no momento em que resolve expor
esta relação de dependência e de intenso envolvimento. Atribuindo a Rodrigo SM
uma identidade que, a rigor, lhe pertence, a autora instaura a mobilidade e a
oscilação da voz autoral, por conseqüência do seu produto. Desmascarando o
processo de ficção, pela técnica do mise en abime, tão bem representada na
pintura do espanhol Velásquez, Lispector provoca o esvaziamento da identidade
do ser. Quem é este narrador Rodrigo SM? É, na verdade Clarice Lispector? Não
há interesse em uma resposta única e incontestável. Como Machado de Assis, em Dom Casmurro, a dúvida é elemento
gerador de vida e escrever é o grande mote para viver.
Esta
parece ser a grande ponte que liga a estrutura composicional do texto à
personagem preferida do narrador Rodrigo SM, isto é, a morte, já que no
esvaziamento da identidade está implicado um sentido destrutivo próximo ao
sentido de morte, que é a própria destruição, que é o silêncio – ausência de
palavra.
Por fim, gostaríamos de tratar
rapidamente de um dos temas preferidos da autora (e também do narrador Rodrigo
SM), isto é, o tema da morte, tão recorrente em sua obra. Através da
metafísica, a obra clariceana sempre enfrentou a morte. Esta, via de regra,
apresenta-se sob dois aspectos. De um lado, Lispector tratou-a na acepção de
“morte em vida”, em que suas personagens, no mais das vezes, percebiam a
destruição do eu pela intensa solidão humana e pela separação amorosa.
De
outro lado, a autora também falou da morte no sentido literal, momento em que
as personagens encontravam a sua feminilidade e sua autoconsciência. O texto,
através da voz de Rodrigo SM, explora bem este sentido. A posição fetal da protagonista, a explícita
declaração de gozo e de sensualidade e a passagem de virgem a mulher na hora da
morte dão bem esta dimensão. Este aspecto abre caminho para uma perspectiva que
liga esta personagem preferida, a morte, a um corpo de eroticidade intensa e de
paradoxal continuidade: Quanto a mim,
substituo o ato da morte por um seu símbolo. Símbolo este que pode se resumir
num profundo beijo mas não na parede áspera e sim boca-a-boca na agonia do
prazer que é a morte. Eu, que simbolicamente morro várias vezes só para
experimentar a ressurreição.
Estas
duas vertentes para o tema da morte surgem, em A hora da estrela, de forma entrelaçada e vivenciada pela mesma
personagem Macabéa: momento final do texto que privilegia estas duas
perspectivas e uma terceira, que propõe a continuidade do ato da vida. A morte
literal de Macabéa se dá na época de morangos, estação de renovação da vida,
primavera. Entretanto, retomando a obra fílmica, estes elementos são
descartados em função de um efetivo “gran finale”, como prometia o narrador
Rodrigo SM, em que a hora da estrela Macabéa finalmente luziu.
-
CRISE DA LINHA
REALISTA de 30
-
Ritmo lento X
ritmo rápido das cidades ---- literatura urbana
è literatura “rural” de
Rosa
-
proposição: fazer
revelações, acordar os sentimentos
-
quase ausência de enredo
è ação exterior é abolida ----- pensamento metafísico
è
- momento que se
arrasta
è
- busca
psicológica de caracteres que se desintegram
è
- consciências
surpreendidas no fluxo das idéias
-
interesses da
autora: paixão, inquietação, existência metafísica
-
textos não
suportam a oralidade
sobre
A HORA DA ESTRELA:
I-
narrador:
condição do ser humano
II-
universo de
Macabéa = nordestina --- aspecto social perpassado pela ironia, desprezo ---
desejo de ser o contrário (como indica o título na acepção mais comum)
III-
retomada da I com
o desvendamento da morte
-
temas do narrador:
- ironia
- busca de si pela
alteridade com Macabéa
- a linguagem como
fundadora de vida [ a morte é erótica – Bataille ]
- problemática social
no Brasil
---
hora da estrela == hora da morte
è narrador morre com Macabéa
è vida = palavra ; sem palavra --- morte
-
segundo o
narrador:
a) fábula: registro de fatos sobre a vidinha de Macabéa –
não é
b) tempo deve ser cronológico e linear – não é
c) personagens: ele diz que serão sete; tia morta / Glória
/ Olímpico de Jesus / Seu Raimundo / as três Marias (colegas de quarto) /
Macabéa / médico / cartomante / rico da mercedez que a mata / a própria morte
== 12 personagens
d) espaço: cidade grande, Rio de Janeiro, mas não é.
-
duas diegeses:
i.
vida e história
de Macabéa - literatura
ii.
questionamento
cartesiano do narrador - metaliteratura
Aula
16
Sobre
Clarice Lispector e Laços de família
(1925
/ 1977)
-
Perto do coração
selvagem
-
O lustre
-
Laços de família
-
A legião
estrangeira
-
A paixão segundo
G.H.
-
Uma aprendizagem
ou o livro dos prazeres
-
Felicidade
clandestina
-
A hora da estrela
-
Um sopro de vida
ßÞ registro do
processo de aprisionamento dos indivíduos através dos laços familiares e da
prisão doméstica
-
Perto do coração selvagem: (1944) tema
------ processo de escrita
|
crítica aos padrões da época: metaliteratura
-
narrativas de ritmo lento (interior )
X ritmo acelerado das
cidades (externo)
-
escritura que se
propõe como epifania: auto-exame provocado por fatores externos
|
( acontecimento ou incidente que
ilumina a vida da personagem)
1. personagem colocada numa situação cotidiana
2. preparação do evento que é pressentido
3. ocorre o evento que ilumina a vida
4. desfecho, onde se considera a situação da personagem
ßÞ mudança de comportamento
ou
retorno à normalidade anterior
-
tempo: presente / e na cidade (urbana)
-
ação: não há enredo --------ação exterior é abolida em favor do momento que se
arrasta
| da busca psicológica
de caracteres que se desintegram
| das consciências
surpreendidas no fluxo das idéias
|
narrativas monocêntricas --------
problema: consciência individual
è
as personagens
parecem ser sempre as mesmas: apresentam-se
problematizadas sob o mesmo signo da
existência
-
temas preferenciais: paixão que
domina as personagens
inquietação
que as conduz
existência que as subjuga
ßÞ consciência lúcida de
frustração
impossibilidade de uma vida plena
-
não-oralidade:
impossibilidade de reprodução de seus textos, pois não há enredo
-
limitação da palavra: incapacidade de significação total [ convulsão do signo ]
è
uso de símbolos conceituais: ovo / barata / espelho
- laços de família ( 1960)
è
registro do
processo de aprisionamento dos indivíduos através dos laços
familiares e da prisão doméstica
[1]
Segundo informações da crítica que também trabalha com elementos biográficos, e
depoimentos de Olga Borelli, Clarice Lispector escreveu dois textos
concomitantemente: A hora da estrela
e Um sopro de vida. Ambos textos
foram compostos a partir de fragmentos que posteriormente foram selecionados e
organizados para a composição dos respectivos romances.
[2]
Jorge Luis Borges, num texto intitulado O
duplo, disserta sobre estas duas acepções do tema do duplo, postulando duas
genealogias: uma de origem escocesa, outra oriunda da Alemanha.
[3]
Segundo ensaio Entrando no bosque in
ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque
da ficção. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
Nenhum comentário:
Postar um comentário