O gênero autobiográfico ainda é alvo
de restrições. Geralmente é reduzido à etiqueta de peça documental, fato que o
restringe ao âmbito da historiografia e não ao da literatura. Ocorre que a
crítica brasileira, na grande maioria das vezes, tem olvidado a essência das
escritas autobiográficas, qual seja a formação de um discurso híbrido, que se
realiza a partir de um espaço intervalar entre a historiografia e a
ficcionalidade. A Literatura Brasileira, como instituição que propõe um cânone
que a represente, não leva em consideração uma série de elementos
constituidores do gênero autobiográfico e, sintomaticamente, exclui os textos
sob a chancela da autobiografia.
Entretanto, na contramão desse posicionamento restritivo, a própria Literatura
se encarrega de fornecer respaldo para que repensemos as categorias de gêneros,
tradicionalmente tidos como “literários” e
“não-literários”.
Na
época da formação de nossa literatura nacional, isto é, sua consolidação a
partir do Romantismo, alguns escritores começaram o exercício aparentemente
despretensioso de narrar suas próprias vidas. O século XX já encontrou a nossa
literatura forjada e é, justamente, na vigência da modernidade que o gênero
autobiográfico alcança realizações exitosas. Meu ponto de partida será o aporte
teórico que fundamenta as narrativas autobiográficas para, em seguida, tratar da ascensão das mesmas no
panorama da literatura brasileira contemporânea. Graciliano Ramos, Erico
Veríssimo, Manuel Bandeira, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade são alguns
dos nomes consagrados que praticaram esse tipo de escritura, consolidando-a no
seu estrato literário. Na produção autobiográfica desses escritores
encontraremos procedimentos altamente inventivos compatíveis com as suas
chamadas produções ficcionais estrito senso.
Os elementos da engrenagem autobiográfica
Via de regra, autobiografia é uma narrativa retrospectiva em prosa que uma
pessoa real faz de sua própria existência, quando atribui importância a sua
vida individual, em particular sobre a história de sua personalidade[1].
O narrador autobiográfico, por sua condição excepcional de contador de sua
própria aventura, é uma figura que traz plasmada em si mesma a marca da
dualidade. Dito de outra forma, na escrita autobiográfica pressupõe-se uma
movimentação dialética do eu através
da vivência do Complexo de Narciso. Assim, estão implicadas duas entidades que
convivem tensionalmente na busca de uma unidade. Isso se dá na medida em que o
autobiógrafo se debruça sobre sua imagem especular. O movimento narcisista
pressupõe a duplicidade do ser, eu e eu-outro, ou eu-atual e eu-do-passado,
personagem principal do universo diegético que compõe a obra e o narrador que
está plantado no tempo do discurso.
Há um discurso com fins similares
aos do historiográfico, isto é, informar determinados acontecimentos do
passado, e um outro cujos elementos de literariedade conferem marcas de ficção
ao relato autobiográfico. Por outro lado, via de regra, a autobiografia
distingue-se do romance pela obviedade dos objetivos de cada um: o autor, em
ambos os casos, narra fatos e acontecimentos, mas pretende que sejam verídicos
para o primeiro e ficcionais para o segundo.
Seguindo
essa trilha, o caráter rigoroso da veracidade do relato entra em colapso quando
se leva em consideração o eu como
centro gerador dessas narrativas. Será comum que o autobiógrafo dote seu duplo,
a personagem principal, com sinais próximos à perfeição, ou, no mais das vezes,
propagandeie uma “verdade” que lhe atribuirá um caráter heroicizante e apologético.
Toda escrita autobiográfica implica
algumas considerações que estão em relação direta com o sujeito emissor, isto
é, com o sujeito que resolve narrar os episódios de sua vida. Não se pode
inferir disso, é claro, que tudo o que compõe o texto autobiográfico
corresponde à verdade objetiva dos fatos. Se, por um lado, ele busca a verdade,
por outro, essa verdade é vista pela ótica pessoal e subjetiva do sujeito de
quem parte o ato autobiográfico. Dessa forma, alguns fatos vivenciados no
passado podem, e na maioria das vezes é o que ocorre, metamorfosear-se em
produtos da fabulação, da ficcionalização. Há, assim, um jogo dialético, cujo
resultado será fruto da tensão entre a realidade propriamente dita, substrato
que fornecerá os “motivos”, e a ficção, o resultado literário desses
“motivos”.
Além
disso, é preciso considerar um certo sentido de transcendência à morte. É
notória a preferência da idade avançada como momento do ato autobiográfico. A
escrita autobiográfica geralmente se constrói a partir da história de um eu
assustado pelos signos anunciadores do fim, de tal sorte que esse eu parece
repetir “eu não vou morrer!”.
A modéstia que não se disfarça
Em 1873, José de Alencar, já
consagrado como escritor no Brasil do II Império, escreve Como e por que sou romancista. Sua intenção declarada é dar seu
depoimento acerca do surgimento de sua carreira literária e garantir-se na
posteridade. A ênfase inicial do texto recai sobre o desvelamento do aconchego da intimidade. Com uma certa
falsa-modéstia, Alencar inicia: Na
conversa que tivemos, há dias, exprimiu V. o desejo de colher, acerca de minha
peregrinação literária, alguns pormenores dessa parte íntima de nossa
existência, que geralmente fica à sombra, no regaço da família ou na reserva da
amizade.[2]
Afora
algumas questões de ordem ideológica do Romantismo, é bastante perceptível na
sua autobiografia a utilização de uma técnica narrativa já utilizada com êxito.
Da mesma maneira que fez em Lucíola,
o escritor simula a existência de um interlocutor silencioso e sedento de
conhecer sua intimidade. Alencar transfere para um outro eu, carinhosamente chamado de “Meu amigo”, o próprio desejo de se expor, de se deixar
transformar em narciso. Essa
transferência irá regular o tom de seu discurso autobiográfico.
O
tratamento que o narrador dá à sua imagem, isto é, o protagonista da diegese, é
todo ele pontilhado pela aceitação, pela apologia, pelo sentimento narcisista
de reconhecimento imediato. O tom grandiloqüente do texto propicia a que se
vejam as marcas de um ego desejoso do reconhecimento alheio. Todo o primeiro
capítulo está impregnado dessa substância narrativa. À guisa de explicação, o
autobiógrafo chama sua autobiografia de autobiografia
literária, e/ou o livro dos meus
livros. São palavras do autor:
Se em alguma
hora de pachorra, me dispusesse a refazer a cansada jornada dos quarenta e
quatro anos, já completos, os curiosos de anedotas literárias saberiam, além de
muitas outras coisas mínimas, como a inspiração do Guarani, por mim escrito aos 27 anos, caiu na imaginação da criança
de nove, ao atravessar as matas e sertões do norte em jornada do Ceará à Bahia.[3]
Curioso
notar que na autobiografia alencariana não há o transparente desvios de
identidade e de tempo que marcam o processo da escrita autobiográfica. Eu-atual
e eu-do-passado não se distanciam muito, vale dizer, a idealização com que o
narrador descreve e narra os acontecimentos do passado acabam por conferir uma
certa igualdade, digamos, de características com o protagonista. As datas
mencionadas no decorrer do texto servem para demarcar a permanência e não o
distanciamento. O lembrado está no texto não para incitar a “angustiosa busca
do eu”, mas sim para reiterar os qualificativos com os quais o autobiógrafo se
veste. O processo de “busca de verdades” pessoais é suplantado por uma
incontida auto-apologia.
Através
do artifício da carta, por natureza o
discurso da intimidade, Alencar propõe o seu relato autobiográfico, cuja mola
propulsora passa a ser o desejo externo de um outro, sintomaticamente
inominado. Tangenciando alguns fatos de sua infância e maturidade, Alencar
dedica-se com mais afinco à propaganda de sua literatura. Dessa forma, o
autobiógrafo parece estar mais interessado em explicar-se aos seus leitores do
que efetivamente em ir a cata de si mesmo. De toda sorte, trata-se de uma
narrativa explicitamente autobiográfica, cujo foco de atenção não é o
eu-do-passado, mas sim o escritor em face de suas explicações e justificativas
para a construção de sua obra literária.
Apesar
desses argumentos rapidamente expostos, vale acrescentar que com ele a
autobiografia no Brasil começa a engatinhar. Naturalmente muitos textos
referentes aos séculos anteriores ainda estão por emergir no panorama da
Literatura Brasileira. De toda sorte, cumpre observar que muita produção dita
íntima, como diários e cartas, está ainda restrita ao ambiente da
historiografia.
As
escritas autobiográficas ainda eram planejadas como textos fora do panorama da
Literatura. Como produção restrita ao círculo da intimidade, eram quase
destituídas de problematizações que a Literatura Brasileira já apresentava.
Além de Alencar, é preciso lembrar de Minha
formação, de Joaquim Nabuco, o qual, indo na esteira do romancista, também
escreve para fazer um auto-elogio sem deixar-se perpassar por questões mais
complexas na urdidura de sua autobiografia.
Contudo
o século XX, marcado por intensos questionamentos e por sucessivas implosões de
“verdades” e sistemas das mais variadas ordens e facções, irá exigir o trânsito
complexo entre a realidade propriamente dita e a ficção como fulcro das
autobiografias. Os paradigmas serão desenclausurados e abrigarão as inúmeras
transgressões possíveis. As rupturas no gênero autobiográfico se estenderão de
mecanismos estruturais simples às esferas temáticas conturbadas. O que reza, no
século XX, é a intensa busca do inusitado. Nesse contexto, as autobiografias
servem como possibilidades para as grandes desconstruções do sistema literário
vinculado à Tradição.
Muitos
escritores se dedicaram ao “novo” gênero e o fizeram com a mesma competência
dada à produção ficcional estrito senso. A partir da bem-comportada e
“impessoal” autobiografia de Alencar, os autobiógrafos do século XX deixaram as
marcas indiscutíveis do desejo da transgredir normas já gastas as quais não
mais respondiam por suas necessidades literárias.
O autobiógrafo partido
Toda escrita autobiográfica almeja a
reconstrução da imagem do eu. Entretanto, ela só será reconstruída a partir de
um sistema comparativo que permita a identificação do eu com o eu-especular. A
noção do outro, isto é, o sentido de alteridade, ou, segundo Octávio Paz, a
outridade é condição essencial para que esta empresa seja levada a cabo.
O jogo com o duplo é geralmente
entendido a partir das personagens, isto é, o desdobramento de uma personagem
em outra personagem, nas quais surge um embate, no mais das vezes de caráter
moral, entre o original e o decalque (a personagem e seu duplo).
Entretanto, a tematização do duplo
não está presente apenas nos desdobramentos das personagens. Há, igualmente,
duas outras instâncias. Uma delas consiste nas relações de discurso e de
proposta à revelação de uma verdade individual. É lícito considerar que o
gênero autobiográfico também se apresenta como o duplo das narrativas ficcionais
estrito senso. Por ser o outro da ficção, as narrativas autobiográficas propõem
uma leitura diferenciada. Nela, a ilusão de realidade é maior do que aquela
normalmente encontrada em textos da instância ficcional.
Essa relação pode ser verificada
também em autores que se destacam por inserir elementos autobiográficos em seus
textos ficcionais. Um exemplo reconhecido pode ser dado através do nome do
escritor Graciliano Ramos. Com exclusão, talvez, de Vidas secas (1938), sua obra
de ficção compõe-se a partir de porções autobiográficas sem, contudo, ser
considerada autobiografia. Exceção feita, naturalmente, aos seus livros: Infância (1945) e Memórias do cárcere (1953),
autobiografias declaradas[4].
A outra instância a respeito da
tematização do duplo nas narrativas autobiográficas refere-se à cisão do
autobiógrafo em duas funções que, a rigor, complementam-se ao final do relato.
Refiro-me ao narrador e seu desdobramento enquanto personagem principal do
universo diegético, ou eu-atual e eu-do-passado. Este viés do duplo é vivenciado na incidência do mito de
Narciso, elemento propulsor do ato autobiográfico.
O narrador autodiegético das autobiografias compõe-se a partir de uma
estrutura seccionada que o biparte. Esse ato suscitará a estranheza com que se
depara com sua descontinuidade. Essa estranheza é o ato gerador do discurso
autobiográfico. Assim, a escrita autobiográfica é marcada pela intensa
exteriorização do sujeito na sua mais profunda interioridade, já que ele é o
próprio objeto sobre o qual debruçará seu olhar persecutório a respeito da
vida.
Tecnicamente, essa fragmentação do
sujeito verifica-se no extrato temporal do texto. Normalmente, a
presentificação do passado, na malha textual,
faz-se pela marcação dos verbos declinados no pretérito, que, dentro do
contexto da narrativa, são trazidos ao tempo da escrita. O narrador (o eu-atual), instalado no presente, revive-se na personagem principal
(o eu do passado) que está plasmado
na vida que já se foi. Este desvio de identidade observável no ato autobiográfico
só poderá ser resgatado a partir da escrita.
Pedro Nava, no quinto volume de suas
memórias, Galo das trevas - As doze velas imperfeitas (1981), abandona a
tradicional posição do narrador autodiegético das autobiografias, para instituir um narrador aparentemente impessoal,
a quem cabem as obrigações do ato narrativo. Ocorre que o autor, por motivos de
pudor[5],
cria uma espécie de alterego em suas memórias,
sintomaticamente chamado de “Egon”, e que funciona como a concretização desta
dualidade do sujeito no ato autobiográfico.
A escrita autobiográfica propõe o
confronto do eu com seu próprio
limite, ou seja, o eu-outro. O
sujeito demarca-se resgatando um passado que, se o busca, perturba-o. Essa
busca de alteridade, que o escritor/Narciso intenta pela escrita, sugere formas
reflexivas, como devorar-se a si mesmo,
penetrar em si mesmo, ver a si mesmo, conhecer-se a si mesmo. Da mera
imagem especular apreendem-se os contornos exteriores.
A fenda que se abre no autobiógrafo,
cindindo-o em duas personagens marcadas pelo desvio de tempo, concretizado no
ato narrativo e no tempo diegético, faz com que o leitor experimente uma certa
fluidez temporal que começa num passado distante e, geralmente, desemboca no
passado recente, momento que coincide com o final da escrita autobiográfica. A
semelhança com a lenda de Narciso não é mera coincidência. O paradigma
narcísico divide-se em imagem original e imagem especular; a primeira procura
na segunda os reflexos que julga possuir e a busca faz-se através de um debruçar-se sobre o fluxo da
água que funciona como espelho. O decalque apenas reflete aquilo que lhe dá
forma.
O autobiógrafo, associado à figura
de Narciso, debruça-se sobre os conteúdos do passado, isto é, sua história
pessoal, para nela ver sua imagem
refletida. O que encontra é o resultado de uma combinação de dados que refletem
uma imagem, a do personagem, cujas distorções em relação à original, a do
narrador, propulsionam esta intensa e apaixonante busca para saber e
compreender os motivos que ocasionaram a transformação daquele, a personagem,
neste que é, hoje, o narrador.
As recordações da infância
Toda escrita autobiográfica vem
marcada por uma espécie de discurso preambular, cujo fim consiste em descobrir
o elemento original que deu início à existência do sujeito. Por mais simples
que possa parecer à primeira vista, a “narrativa do nascimento” complexifica-se
na medida em que ela é produzida através dos conteúdos do âmbito do
esquecimento. Essa situação peculiar dá início à tensão entre a fabulação e a
realidade concreta. A nossa origem que se
perde na noite da amnésia só poderá ser resgatada através das narrativas
dos outros membros da família, ou daquilo que Freud chama de romance familiar. Essa parte é o
material sobre o qual assentarão as primeiras lembranças de vida, ou, na melhor
das hipóteses, a origem da consciência.
É
sintomático, portanto, que muitos textos autobiográficos iniciem por estas
particularidades. Oswald de Andrade exprime perfeitamente o dilema do “início”:
Como e por onde começar minhas memórias?
Hesito. Devo começá-las pelo início de minha existência? Ou pelo fim, pelo
atual (...) Pois se é preciso começar, comecemos pelo começo. A mais longínqua
lembrança que tenho de vida pessoal (...)[6].
Já Graciliano Ramos parte do princípio de que a narrativa do nascimento
concretiza-se em função das primeiras lembranças. Infância, seu livro de estréia no gênero autobiográfico, inicia
pela declaração da consciência:
A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso
de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta (...) Talvez
nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia,
permaneça por eu ter comunicado a pessoas que a confirmaram (...) De qualquer
modo a aparição deve ter sido real.[7]
Não à toa, o
escritor alagoano inicia suas memórias
por um livro sintomaticamente intitulado Infância. Trata-se da
recapitulação de sua vida a partir de uma narrativa do nascimento que abarca
todo o volume, ao mesmo tempo em que instaura, desde o início, um embate
ontológico que se formula através da tensão entre a realidade e a ficção.
O relato
episódico da origem pode estender-se indefinidamente. Qual é o elemento
restritivo da formação do sujeito? Não existe um critério exato e imutável para
o conceito de nascimento, mesmo
porque a imagem que se faz a respeito deste termo tem sofrido evoluções e
alargamentos no seu campo de significação. Nascimento implica nascer para a
vida e, portanto, relaciona-se à formação da personalidade do sujeito.
Há uma série
de quatorze temas convencionais que se inserem, de uma maneira ou de outra, no
relato episódico da narrativa do nascimento. São eles: nascimento (situações
referentes às condições do parto, as quais normalmente são reproduzidas pelo
autobiógrafo a partir de relatos dos familiares), os pais, a casa, a família
(tios, avós, primos, etc.), a primeira lembrança, a linguagem, o mundo
exterior, os animais, a morte, os livros, a vocação, a escola, o sexo e o fim
da infância. A inclusão de tais temas como motivos desencadeadores para a
construção da autobiografia assegura,
em princípio, credibilidade à história do autor.
O dilema da
morte
O discurso
autobiográfico, com exceção do diário, ganha corpo a partir de um sentido dialético,
que impulsiona o ato autobiográfico. Se, de um lado, está a “revivência” da
vida, isto é, se o autobiógrafo escreve para viver novamente, independente de
suas intenções apologéticas, ou para remissão de seus erros, de outro, ele o
faz premido pela perspectiva da morte.
As autobiografias
são levadas a cabo, na grande maioria das vezes, na terceira idade, portanto,
teoricamente, próximas da morte. Oswald de Andrade resolve escrever suas confissões com sessenta e dois anos de
idade. É a sabedoria resultante dos longos anos vividos que dão fundamento ao
processo auto-inquisitório. As marcas do corpo já desgastado pelas doenças
igualmente o impulsionam para este tipo de escrita, que, infelizmente, é
interrompida pela morte do poeta vanguardista. Registra em Um homem sem profissão:
Devo começá-las pelo incício de minha existência? Ou
pelo fim, pelo atual, quando, em 1952, os pés inchados me impossibilitam de
andar no pequeno apartamento que habitamos em São Paulo (...) Estou atacado de
uma asma cardíaca, produzida por insuficiência, e o dr. Emílio Mattar procura
me tirar do caixão, com injeções de Cardiovitol que o farmacêutico da
vizinhança, seu Nenê, vem aplicar todas as noites, na veia.[8]
Pedro Nava
inicia sua produção com sessenta e cinco anos. Baú dos ossos e os demais volumes de suas memórias são levados a lume quando o médico entra no declínio
profissional trazido pela idade. Numa entrevista de 1983, Pedro Nava esclarece
o motivo desencadeador de suas “ruminações” delegando o crédito à velhice:
Com o envelhecimento vamos nos fechando um pouco,
cada um dentro de si, dentro de seu grupo familiar, de modo que eu me fechei
com minha mulher (...) Este intimismo em que nós começamos a viver, a pessoa
muito fechada dentro de si mesma, leva à recordação, à rememorização, a remoer,
a uma ruminação da vida. Depois disto, a sensação de escrever vem certamente de
guardar[9]
As garantias de um jogo
Verdade ou
mentira? Esta é uma das questões que aflige diretamente a credibilidade que o
rótulo autobiografia preconiza. Para muitos, a realidade e a ficção são os dois
elementos que se degladiam em um par antitético. O ato de fingir compõe-se da
importação da realidade vivencial para dentro do texto, repetindo-a a tal ponto
que acaba por atribuir ao imaginário a qualidade do real, sem sê-lo[10].
Dessa forma, a realidade que aparece no texto literário é
uma alusão a algo que ela representa, mas não é. O gênero autobiográfico, por
seu turno, propõe dissumulações para as marcas da ficcionalidade. As
autobiografias, na perspectiva de contar a verdade dos fatos vivenciados por um
ser real além do ser-de-papel (o narrador), formulam-se em uma noção
generalizada e ingênua de que reproduzem a verdade estrita dos acontecimentos.
As produções
autobiográficas são caracterizadas pela tentativa de supressão do implícito como
se, expressão esta que governa e determina a qualificação explícita do
ficcional nos textos literários. A realidade dada é percebida como ilusão de
realidade.
De outra
parte, o ato de fingir, nestes casos, não consiste em demiurgicamente formular
um mundo imaginário e povoá-lo com seres como
se fosse o mundo real. No gênero autobiográfico, a verossimilhança guarda
relações íntimas com a realidade vivenciada pelo autobiógrafo e dela não pode,
sob pena de fracassar a intenção de contar uma verdade, afastar-se ou
olvidá-la. A supressão do como se é iniciada a partir do pacto de
leitura que o autobiógrafo de antemão propõe ao seu leitor. Ao estabelecer uma
tripla identidade, isto é, coincidência radical entre autor, narrador e
protagonista, a narrativa autobiográfica induz a uma leitura que acarreta a
crença de se estar lendo os episódios e tudo o mais que significa a vida real
de uma pessoa.
A
autobiografia cria a ilusão de que estes condicionantes são possíveis. Esta
ilusão contratual faz com que o autobiógrafo incite o leitor a entrar em seu
jogo, dando a impressão de um acordo aceito e assinado por ambas as partes. De
uma forma bastante simples, muitos textos autobiográficos iniciam com a
explicitação desta proposta. Previne
Erico Veríssimo na parte preambular de Solo de Clarineta (1976):
Não esperem que estas memórias formem um documento histórico. Elas não
têm a intenção de fazer nenhum perfil de minha época ou dos meus
contemporâneos. São apenas uma história particular - uma história em tom de
quase romance, mas que vai contada com a maior franqueza. É um livro sincero,
que dedico especialmente àqueles que me têm lido durante todos esses anos.[11]
O escritor gaúcho propõe que a sua obra, recém publicada,
seja lida como um produto de suas reminiscências pessoais: uma história particular. Mas, independentemente do caráter verídico
pretendido para os fatos narrados, o autor adverte que seu texto foi construído
com recursos do discurso ficcional (em
tom de quase romance). Mesmo assim, trata-se de um livro sincero. A certeza do pacto
autobiográfico em uma determinada obra, então, será dada em função de
alguns elementos que dialeticamente são apresentados ao leitor. A primeira
leitura do texto, com todas as indicações preambulares, prenuncia o pacto autobiográfico,
mas é somente através da confirmação do paratexto que ele irá se delinear com
maior clareza. Nele, isto é, no paratexto, a intenção do sujeito autobiográfico
deve estar explicitamente colocada. Retomando Erico Veríssimo, o pacto autobiográfico é prenunciado no
paratexto. Na segunda orelha do livro encontra-se o seguinte fragmento:
Um homem com a personalidade amável de Erico Veríssimo tinha de
resistir às exigências desse gênero, as memórias. (...) Este livro (saibam
todos e saiba o autor) não podia deixar de ser escrito: ao atingir o alto grau
de escritor do povo, de certa forma o romancista contraiu a dívida de suas
revelações[12].
O leitor, já em seu primeiro contato
com Solo de clarineta desconfia de
que se trata de um livro cujos eventos narrados fazem parte da vida do
escritor. Estará presente, portanto, um discurso referencial que terá o encargo
de traduzir, em discurso literário, a vida pessoal do homem Erico Veríssimo.
Por outro lado, este contrato de
leitura, proposto pelo paratexto, será melhor delineado a partir da malha
textual propriamente dita. O primeiro capítulo, Álbum de família, como o próprio título indica um resgate
genealógico, dá conta de estabelecer a identidade entre o narrador
autodiegético, instituído como tal a partir da declinação em primeira pessoa do
singular (Senti um dia a curiosidade ...),
a personagem principal, isto é, a pessoa que (re)vivencia os eventos, e o
autor, cujo nome está estampado no frontispício do livro. Eis um pequeno
fragmento: Cruz Alta foi o ponto de
encontro dos dois troncos cujos ramos se uniram e, numa sucessão de enxertos e
cruzas, tornaram possível o desabrochar desse espécime humano que agora me
contempla, irreverente, do fundo do espelho.[13]
O anjo mais torto no seio da mudança
O gênero autobiográfico é, por
natureza de sua matéria, uma narrativa em prosa. Na contramão desse conceito
dogmático está o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. Inaugurando, no
Brasil, a transgressão à forma tradicional do gênero, o poeta publica, sucessivamente
Boitempo (1968), Boitempo (o menino antigo) (1973) e Boitempo (esquecer para lembrar) (1979), três volumes independentes de poesia.
Subvertendo deliberadamente as modernas teorias a
respeito do gênero lírico, as quais entendem o discurso poético como ficção,
Drummond rompe com o paradigma ao instituir o discurso lírico com teor
narrativo. Na série autobiográfica, o poeta cinge-se em eu-atual, o sujeito lírico dono da enunciação poética, e em eu-do-passado, o ator principal do
enunciado, o qual, na grande maioria dos exemplos, é nomeado de menino. Esse desvio de identidade
acrescido de outros elementos fazem com que o autor proponha um direcionamento
na leitura, incitando-nos ao jogo autobiográfico.
A questão problematiza-se um pouco,
na medida em que Boitempo não
apresenta uma forma narrativa explicitada na malha textual, pois trata-se de
uma composição poemática, cujas peças podem ser lidas separadamente. Isto é,
são poemas autônomos, mas subseqüentes, que perfazem sua autobiografia. A idéia
é, justamente, desarticular os limites da escrita autobiográfica: invadindo a
forma lírica, mas permanecendo no âmbito do narrativo. A opção pelo lírico como
forma apropriada para o desenvolvimento da palavra autobiográfica se insere no
contexto de rupturas que marcam todos os campos humanos na vigência do século
XX. A nós interessa ressaltar, no campo da Teoria Literária, o imenso
alargamento dos limites formais impostos aos gêneros literários, e aqui,
especificamente, no que diz respeito ao gênero autobiográfico.
O que não finda
Resta afirmar o que todos já
sabemos. A Instituição Literária no Brasil tem sofrido imensas transformações
por acréscimos e algumas subtrações. Estão aí para comprovar esse movimento
ininterrupto de imersão das literaturas emergentes, tais como as de expressão
feminina, a dos negros, a dos gays, etc. O gênero autobiográfico ainda está
necessitado de um olhar mais cauteloso e menos desconfiado. Trata-se, entre
nós, de um tipo de discurso literário ainda pouco avalizado e, portanto,
desconhecido.
Os
exemplos aqui utilizados são apenas uma pequena amostra do que as
autobiografias têm feito no país. Naturalmente muitos nomes significativos
foram deixados de lado, especialmente os chamados contemporâneos. Faço menção
àqueles escritores que, marcados pelo último Regime Ditatorial, sentiram
necessidade de registrar suas experiências, por motivos óbvios.
Nessa
época de intensos desmantelamentos e processos de rupturas com a Tradição, o
gênero autobiográfico está ainda em busca de sua(s) identidade(s). Identidades
que, transferidas para o plano diegético, deixam transparecer a relação
intrínseca entre a identidade individual e a identidade de grupo. Em todos os
casos, a unidade cedeu lugar ao plural. Quer dizer, o gênero autobiográfico, por
natureza híbrido, obriga a reflexão do paradoxo identitário brasileiro. Nós
somos oximóricos não apenas em nossas manifestações lingüísticas e culturais.
Ao contar-nos, acabamos por desvendar nossa pluralidade étnica, nossas
ambivalências pessoais, as faces que nos dão formas. Assim, as autobiografias
deixam ver que a essência do brasileiro é, por natureza, plural, porquanto a
escrita autobiográfica é, ela mesma, plural.
[1] LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris:
Euil, 1975. P.14.
[2] CF.
ALENCAR, José de. Como e por que sou
romancista. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.p. 13.
[3]
Op. cit. P.15.
[4] Cf
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão:
ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
[5]Conforme
entrevista de Nava à professora Maria Aparecida Santilli, publicada em Literatura comentada - Pedro Nava. São Paulo: Abril, 1983, na qual ele declara: Essa transposição de pessoas é pelo seguinte
(curioso, eu verifiquei depois), é um fenômeno psicológico do qual quero falar
também. Muito interessante. O Egon, naturalmente, é minha pessoa. Eu passei a
contar como se fosse terceira pessoa, porque me transformei em simples
narrador. (...) Quase todo mundo diz “Égon”,mas para mim vale pelo “ego”. Pus “Ego”
e acrescentei un “n” para dar certa eufonia, para dar um som mais bonito ao
nome que verifiquei, depois, que existe (...) Continuo sendo eu mesmo, eu estou
ali dentro. (p.14:15)
[6]
ANDRADE, Oswald. Um homem sem profissão:
sob as ordens de mamãe. São Paulo: Globo/Secretaria do Estado de Cultura, 1990.
[7]RAMOS,
Graciliano. Infância. São Paulo:
Martins, 1969. p.23.
[8]ANDRADE, Oswald. Op. cit. p.20.
[9]cf.
Literatura Comentada - Pedro Nava São
Paulo: Abril, 1983.
[10]
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In:
LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da
Literatura em suas fontes vol II. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
[11]VERÍSSIMO,
Erico. Solo de clarineta. Porto
Alegre: Globo, 1976 (vol I).
[12]VERÍSSIMO,
Erico. Op. cit.
[13]Ibidem,
p.1
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