sábado, 14 de abril de 2012

A poesia brasileira e os tecidos do mito de narciso


[este ensaio foi apresentado, e posteriormente publicado, nos respectivos anais do Seminário Internacional da História da Literatura - PUCRS, Porto Alegre, 2007]


Muito tem se falado e escrito sobre a necessidade de novos critérios para a História das Literaturas. É consenso que a visão totalizadora e unificada, ainda tradicionalmente apresentada nos cursos de graduação, não dá conta dos inúmeros matizes que a literatura, em especial a poesia, contemporânea apresenta. As tentativas de traçar panoramas abrangentes sobre a produção poética brasileira após Semana de Arte Moderna, em 1922, tem frustrado porque inevitavelmente priorizam certos temas e poetas mais afeitos aos conceitos de “representativos” dos seus autores, com os quais, aliás, não preciso concordar.
Um dos sintomas mais interessantes da falência da historiografia literária como um compêndio completo de “estilos de época” se deu com os poetas. Como etiquetar com a mesma legenda nomes como Carlos Drummond, Cassiano Ricardo, Raul Bopp, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes, Cecília Meireles, João Cabral, Jorge de Lima, entre outros. Agrupá-los como modernistas é subestimar suas poesias e a própria idéia de modernismo. Via de regra, com suas inúmeras exceções, é sabido que um dos vetores modernistas foi a necessidade de se reimprimir identidades brasileiras que dessem vazão às múltiplas faces de nossas gentes. A identidade nacional tornou-se plural. Essa tem sido uma das linhas temáticas em torno da qual se agrupam nomes, dando relevância para uns e status um pouco inferior para outros. Por outro lado, os movimentos reivindicatórios acerca das diversidades abriram a possibilidade para que a História da Literatura também deixasse de ser um conjunto homogêneo de idéias e de princípios estéticos esquematicamente colocados no decurso do tempo.
O século XX desvendou a crise identitária e a aprofundou nas questões nacionalistas e nas interrogações individualizadas. Em decorrência das afirmações eufóricas dos românticos seguiu-se, pela via modernista, uma certa instabilidade emocional acerca das certezas identitárias. Não foi à toa que Mário de Andrade dizia ser trezentos, aliás, trezentos e cinqüenta.
Os próprios poetas se entregaram à tarefa de organizarem suas poesias.
Nunca se viu tanta antologia... Obtiveram relativo êxito textos como 26 poetas hoje, de Heloisa Buarque de Holanda, Sincretismo, de Pedro Lyra, Artes e ofícios da poesia, de Augusto Massi, Cem melhores poemas, de Ítalo Moriconi, entre muitos exemplos. Os críticos elegeram, cada um deles, determinados critérios organizacionais em torno dos quais propuseram o agrupamento de poetas. Esses critérios, naturalmente, são estabelecidos conforme o interesse de pesquisa do organizador das antologias, o que confere uma ampla diversidade meritosa para a pertença, ou não, a uma “Poesia Brasileira”.
Um exemplo pode ser dado pelo crítico, e também poeta, Antônio Carlos Secchin. Para tratar de poesia brasileira no século XX com seus alunos, decidiu laborar uma antologia temática arbitrada por ele, estabelecendo oito temas: 1. a poesia da poesia; 2. imagens da natureza; 3. imagens urbanas; 4. um eu que se espia; 5. a morte e seus mistérios; 6. laços de família; 7. imagens do amor; e 8. a palavra em combate. Seus eleitos vão desde os canônicos Drummond, Bandeira, Cecília, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, João Cabral, Murilo, Ferreira Gullar, Adélia Prado, Carlos Nejar e Vinícius de Moraes aos menos conhecidos do grande público como Luís Aranha, Dante Milano, Lúcio Cardoso, Cassiano Ricardo, Mauro Mota, Jorge de Lima, Abgar Renault, Mário Quintana, Joaquim Cardozo, Gilberto Mendonça Teles, Carlos Pena, Raul Bopp ou ainda à também poetas ligados à música como Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, Torquato Neto, ou ainda Cacaso, Leila Mícolis, os irmãos Campos, Affonso Romano enfim, um leque bastante variado, mas não tão abrangente assim, para dar conta de uma Moderna Poesia Brasileira.
Por outro lado, a parte estas questões de cunho ideológico, é curioso reparar que as Ciências Naturais, como a cosmologia, por exemplo, em meio às inúmeras teorias sobre a gênese do universo (desde o Relojoeiro cego, de Newton, por exemplo), sempre postulou uma ordem temporal imutável. Foi preciso a disseminação das teorias revolucionárias de Einstein para que o mundo conhecesse a relativização de suas verdades, antes totalitárias. A Matemática, a Física Quântica e a Química, ao postularem a Teoria do Caos, acabaram por interferir em conceitos muito arraigados, tais como a apreensão da Realidade e a própria noção de Realidade. Ainda hoje, afirmações sobre a condição coadjuvante do homem no universo ainda causam um certo constrangimento e, no entanto, a sincronia temporal entre seres diversos passou a ser uma idéia que não se refuta mais: O tempo conecta a nossa existência com tudo o que existe no cosmo, inclusive o próprio cosmo. A cada batida de nossos corações, incontáveis insetos saem de seus ovos enquanto incontáveis outros morrem, ondas quebram em todas as praias do planeta, galáxias se distanciam um pouco mais, e estrelas espalhadas pelo Universo nascem e morrem (GLEISER; 2001:271). Já não somos mais o centro do universo, nem Deus!
É difícil precisar se a História mudou por conta das relativizações acerca do tempo, ou se foi o Tempo que admitiu outras categorias em função de um novo olhar da História. O fato é que o fim do século XIX começou a viver uma crise que repercutiu nos longos 100 anos seqüentes. Até então, a concepção aristotélica sobre o Tempo, na qual os eventos são datados rigorosamente numa seqüência ininterrupta de passado em direção certa ao futuro, governou o pensamento ocidental. A humanidade começou a admitir outras formas de apreensão do tempo, não mais na sua horizontalidade, mas no jogo com outros vetores. A título de lembrança, podemos citar o binômio tempo mítico / tempo profano, que do ponto de vista religioso explica o homem no cosmo, e não em um decurso datado e fixado. No Brasil foi preciso que o Modernismo se firmasse como força propulsora da desconstrução dos saberes tradicionais, e, dentre eles, da mecanização do tempo na linha crescente e de fluxo ininterrupto. O Tempo, instrumento articulador das historiografias, deixou de ser a segurança da racionalidade. A simultaneidade dos fatos, e das subjetividades, modificou profundamente a História. Não cabe aqui discutir a Nova História e suas propostas tanto metodológicas como filosóficas, mas é necessário salientar que a História, agora no plural, não se faz unilateralmente como a produzir um conhecimento hegemônico, autoritário e singular.
O que se percebe, como repercussão quase imediata pela vigência acachapante desses modelos um tanto autoritários, felizmente em franca queda, é um estado de desconforto, sobre o qual a crítica especializada, e todos aqueles que se dedicam ao estudo da poesia,  andam meio à deriva, meio sem saber onde está a identidade da poesia. Vamos nós, críticos de poesia, tal como os poetas, também na errância de uma identidade que se multiplica indefinidamente nestes anos de alta modernidade.
Como num reflexo de outro reflexo, a poesia se dispersa e a crítica-teoria que vai atrás também se dispersa em multiplicidades às vezes impensáveis.  Eu, particularmente, entendo que um caminho fecundo e prazeroso para estudar poesia brasileira é buscar alguma identidade, ainda que imatura e multifacetada, uma identidade que se torne plural e que admita inclusões variadas – ou seja, uma identidade que não é bem uma identidade nos moldes usuais. Parto, então, do que para mim é um princípio quase metodológico. A poesia brasileira, notadamente a partir do século XX, perseguiu dois vieses que se cruzam e que se bifurcam, com os quais tenho insistentemente trabalhado em minhas pesquisas. Refiro-me à dois blocos temáticos, que expressam cada um a seu modo as crises identitárias a que temos sido submetidos desde o início da modernidade. A lírica, especialmente, tem apresentado um eu-lírico em busca de reflexos nos quais possa se reconhecer, ao mesmo tempo em que a própria palavra poética se reflete numa angustiosa e, ainda assim, deliciosa perseguição das suas essências.
Vejo nisso revivências de certos mitos fundacionais da própria noção de modernidade, e que podem ser resumidamente citados pela recorrência dos mitos de Narciso, de Orfeu e do Labirinto, todos os três originários da Grécia e que mesclados a outros tantos mitos forjaram uma espécie de “cultura ocidental” muito presente em nossos dias de modernidade líquida, alta modernidade, sobremodernidade, pós-modernidade e outras formas correlatas de designar a contemporaneidade. Aliás, Durand já atentou para a ocorrência de trocas de mitemas entre os mitos, bem como de acréscimos e decréscimos de mitemas. O seu conceito de bacia semântica, que inclui conceitos de perenidade, derivações e desgaste do mito, indica caminhos para se entender melhor aquilo que nossos poetas fazem e que nós, mesmo sem ter exata consciência disso, também fazemos, pois neles, nos poetas, reconhecemos nossos sentimentos e destinos. A lírica, sabemos, surgiu nos primórdios gregos, com Safo, Píndaro e Anacreonte, todos três preocupados com uma certa noção de indivíduo que priorizava o sentimento particular em detrimento da coletividade impressa no épico e no dramático. Então, para mim o caminho natural é seguir as reescritas e redimensionamentos dados ao jogo especular, no qual brotam o sujeito confessional e a poesia. Trata-se do duplo, no seu viés particular e no seu viés profissional.
            Não tenho certeza se essa perspectiva que adoto, quer dizer, buscar entender a poesia em um movimento cultural maior mediada pelo imaginário, é a melhor ou a mais indicada para se trabalhar com poesia; também não tenho cristalizada a idéia de que o poema não deva ser tratado assim tão cientificamente como usualmente se faz nos meios acadêmicos. Eu, particularmente, adoto algumas idéias de Bachelard como forças motrizes para ler poesia. Uma delas é o binômio ressonância e repercussão. Essas idéias implicam, necessariamente, que o crítico seja prioritariamente um leitor, mas não uma entidade abstrata, na qual cabem inúmeras pessoas sem rosto definido. De certa forma, estou dizendo que é necessário assumir uma identidade pessoal diante do poema de outrem, e para falar sobre ele, o poema, é preciso assumir essa individualidade, dizendo-se, nomeando-se, usando-se como caixa de ressonância, para que o poema encontre condições de ser e de dizer aquilo a que veio. Quer dizer, em meio a tantas preocupações com o coletivo, eu assumo minha individualidade e a reafirmo na medida em que elejo como material temático as questões identitárias dentro da lírica, quer no seu contexto narcísico, quer nas suas tramas metapoéticas. Eis meu labirinto profissional! Por ora, fico com narciso (mas necessariamente não com o narcisismo!).
Durand diz que:
Não há mito inicial, puro (...). Qualquer mito não é senão o conjunto de suas lições, poder-se-ia mesmo dizer de suas leituras(...) O mito decompõem-se em alguns mitemas indispensáveis que lhe conferem sincronicamente o sentido arquetípico, mas, diacronicamente, ele é apenas constituído pelas lições circunstanciadas por esse acolhimento, essa leitura muito particularizada (...) Há que sublinhar este paradoxo, em que a permanência só é conferida pelas variações. (DURAND; 1996:155). 

            Todos nós conhecemos um pouco do mito de Narciso, pelo menos em seus elementos constitutivos mais elementares. Trata-se do rapaz que se apaixonou pela sua própria imagem, nunca alcançando-lhe ao toque da mão. Originalmente, todo mito encerra uma aprendizagem, e este ilustra o poder de Nêmesis que restabelece a justiça universal. Narciso foi punido por ter desejado subtrair-se à lei comum e por ter se recusado a amar alguém. A literatura da Idade Média registra episodicamente o aparecimento do mito de narciso em composições literárias, mas é somente a partir XVIII que o motivo reaparece, já contando com algumas subversões, ou acréscimos dos mitemas originais, contados por Ovídio. Essas intervenções literárias dão uma abrangência maior ao mito. Este entrecho assim resumido efetivamente não dá conta da complexidade de imagens que o mito tem despertado ao longo dos anos, especialmente no contexto brasileiro. Desejo aqui apresentar alguns exemplos de releituras do mito de narciso. Os poetas escolhidos são oficialmente etiquetados como modernistas, mas essa “tipologia” pode, e talvez deva, ser relativizada.

A POESIA DOS ESPELHOS
            A poesia de Cecília Meireles, sem dúvida, órbita poucos temas e/ou assuntos. O que mais interessa à poeta é a poeta. O narcisismo conforma as mais diversas imagens propostas pelo eu-lírico. Ora é a nuvem que lhe serve de espelho, ora são as águas salgadas que lhe devolvem imagens distorcidas de seu rosto marcado pelas feridas do tempo. O espelho, para Cecília, assume formas diversas e inusitadas, mas sempre carregadas de uma melancolia aliada a uma certa resignação feliz em ver-se diferente do decalque que o reflexo especular lhe oferece. Eis um poema exemplar:

Procurarei meu rosto na água, nos vidros, nos olhos alheios.
Duvidarei de mim, que me contemplo,
Da água, dos vidros, dos olhos que me refletem.

Procurarei meu rosto com as mãos. Como os cegos
E sempre me sentirei a mesma e sempre me encontrarei diferente.

Procurarei meu rosto dentro da terra, no chão do planeta onde vou ficar.

Procurarei meu rosto num lugar eqüidistante de todos os planetas.

Em que pólo poderei te alcançar, ó meu rosto, incerto e fixo,
Ó fugitivo predeterminado,
Ó eterno mortal?

Procuro-te – para sentir o molde de onde vieste,
Ó cópia dolorida.

Que conseguiste, afinal, preservar da essência a que pobremente serves?[1]

            Este poema parte de uma visão narcísica para acrescentar ao mito alguns elementos na composição do espelho. Mas antes, convém observarmos o que o texto conta. Eis uma paráfrase: o eu-lírico, marcado em primeira pessoa no verso 01, afirma que procurará seu rosto na água, nos vidros e nos olhos dos outros e, feito isso, duvidará daquilo que encontrar; continuará procurando seu rosto com o tato, mas isso também não lhe satisfará porque se sentirá igual e diferente; continuará buscando seu rosto dentro da terra, no planeta, e em um lugar central do universo. Ao cabo dessas ações sem resultados satisfatórios, o eu-lírico pergunta ao seu rosto em que extremo do planeta será possível encontrá-lo, já que se trata de objeto volátil. Passa, então, à explicação de tal busca: desejo de sentir os contornos que delimitam o rosto, chamado de “cópia dolorida”. Ao final, com leve tom de desconforto, pergunta ao interlocutor, isto é, o rosto, o que ele conseguiu manter de essencial em relação ao original a que sempre serviu.
Uma rápida visada na poesia de Cecília já nos deixa ver a significativa presença do tema no seu imaginário. Em Dispersos, além do poema acima transcrito, são exemplos: Tão dolorida, tão dolorida (1578), Eternidade inútil (1631), Pergunto-te onde se acha a minha vida (1636), Sem corpo nenhum (1653), Espelho cego (1725), As borboletas brancas (1859), Personagem (1882), É preciso não esquecer nada (1926), entre outros; na poesia publicada, desde Viagem até Solombra, os exemplos são os mais diversos, como Retrato (232), Noções (271), Personagem (305), Canção quase inquieta (337), Auto-retrato (456), Mulher no espelho (533), Tempo viajado (616), Minha sombra (465), O rosto (663), Pastora descrida (679), entre tantos poemas ao longo de sua obra.
 De todos modos, o poema encerra uma releitura do mito de narciso, agora não mais preocupado com sua beleza, com sua desmedida por ter-se recusado ao amor. A releitura de Cecília redimensiona o mito para uma concepção moderna, na qual a identidade não alcança uma unidade porque os espelhos, os mais diversos possíveis, não devolvem a imagem idealizada, estática e francamente reconhecível; há uma dissonância entre o original (no poema ela chama de essência – verso 13) e o decalque (no poema é o rosto). Essa dissonância é sua marca. Desse modo, a produção da imagem, visual ou tátil, será sempre marcada pela falta: duvidarei (verso 2), me encontrarei diferente (verso 5).
            O fim não é a morte, como no mito, mas um abrandamento da pena. A poeta é condenada à paixão do Eu. A presença do tema de narciso em sua poesia assim o demonstra. Angustiada pelas imagens de si que se mostram nas mais diversas formas da água, os reflexos lhe devolvem igualmente um intenso prazer na auto-contemplação. Esse círculo vicioso que se instaura pelas constantes revivências de narciso conduz, é certo, a um certo sentido ególatra que a impede de se afastar da apaixonante busca do eu – a auto-referencialidade do eu-lírico – marca inconfundível desses nossos longos anos de modernidade.

UM NARCISO QUE SE DESCULPA
A partir do tema do duplo, por exemplo, a poesia de Mário Quintana tem sido revisitada com uma certa freqüência em função da polarização bastante evidente entre o velho e a criança. Aliás, essa imagem pueril de “criança-poeta”, ou “poeta-criança”, que tem sido veiculada encerra  desconhecimento dos ardis do poeta. É tentador ver assim, porque a simplicidade excessiva fecha a questão, mas parece-me que só isso não basta. Claro, a voz da infância, tema romântico por excelência, e por isso mesmo muito presente na poesia dos modernistas, remete à um movimento especular do sujeito – quando lembro o passado, única certeza ainda que relativa, a infância devolve uma certa tranqüilidade e uma certa segurança. Natural, então, que o velho se volte para suas reminiscências. Julgo, entretanto, que em Mário Quintana a infância tem uma implicação mais profunda do que essa, um tanto rasa para quem era conhecido por suas artimanhas e por seus aforismos irônicos. Bachelard dizia que na idade do envelhecimento, a lembrança da infância devolve-nos aos sentimentos finos (BACHELARD, 1988:110). E mais: a infância é o poço do ser. É nela que se encontram a memória e a imaginação, sem as quais não se alcança a imagem de sua própria infância. 
            Por outro lado, o resgate pela via da imaginação criadora acerca da infância, remete ao mito de narciso, ou melhor, a uma reescrita do mito de narciso, redimensionando-o a partir das necessidades modernas de se ajustar identidades. Com esta proposta, gostaria de reavaliar a opinião de Tânia Carvalhal, para quem Mário Quintana não tinha apreço pela própria imagem em gesto narcisista; o poeta não se detém em contemplações nem em especulações existenciais (CARVALHAL, 2005). Mais adiante, no mesmo estudo ela afirma que a figura resultante de uma representação não é unitária e, por isso mesmo, não cabe numa única representação simbólica, sendo construída, portanto, sobre um processo de projeções: a imagem final é a do menino, que convive com a do homem, recoberta pela do pai, que, por sua vez, se projeta sobre a imagem do poeta (CARVALHAL, 2005).
Pois é justamente essa particularidade que coloca o poeta como homem de seu tempo e, portanto, perscrutor de uma identidade individual pluralizada, redimensionando o mito. Ele sabia que a imagem totalizadora não é possível. A imagem da infância, ou melhor, as imagens que a memória cria sobre a própria infância, são revelações especulares do velho que se busca, porquanto escreve sobre o assunto, mas que apesar das semelhanças, não lhe devolvem as respostas às perguntas implícitas. Trata-se, enfim, de um narciso que, modificado pelas vicissitudes dos tempos decorridos desde o narciso ovidiano, busca uma outra via de conhecimento que não o reflexo direto e na mesma temporalidade. O mito de narciso incorporou outros mitemas e abandonou outros tantos. De mera instrução para não se desviar da lei comum ao esquivar-se ao amor reprodutivo e da lei comum, o século XX redimensiona o protagonista, colocando-o nas mais diversas situações de ausência de referenciais imediatos que lhe forneçam uma identidade, bem como altera a sua substância juvenil. É difícil, portanto, saber se o mito de narciso é que conforma uma poesia sobre a infância no espelho da velhice, ou se é justamente por se colocar como uma poesia especular antípoda entre o velho e a criança que o mito passa a ser recorrente. 
            A recorrência ao mito de narciso na poesia de Quintana é significativa. Mas não como uma imagem totalizante, na qual se possam ler os mitemas mais importantes, ou mais reconhecíveis, e ver uma narrativa completa. Não se pode esquecer que a época de Mário é marcada pela fragmentação, ou pela multiplicação dos pedaços que antes compunham um todo facilmente montado como se fosse um quebra-cabeça. As partes que volta e meia compõem as identidades do poeta são encabeçados pela figura do pai (“O velho do espelho”), por objetos insólitos para essa relação, tais como o baú (“A alma e o baú”), retratos de parede das avozinhas (“O espelho”), elementos da natureza (“Auto-retrato”), os sapatos (“Canção de primavera”), e outros. É bom lembrar de Bauman: (...) só se pode comparar a biografia com um quebra-cabeça incompleto, ao qual faltam muitas peças (e jamais se saberá quantas). Deduz-se que a construção de uma identidade, marca mitêmica mais importante no mito para os tempos modernos e sucedâneos, assumiu a forma de um experimento que não tem fim. Por outro lado, a identidade só se estabelece como busca quando se a perde. Sempre que se ouvir essa palavra [identidade], pode-se estar certo de que está havendo uma batalha. (...) Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da refrega (BAUMAN, 2005).
A releitura de Mário passa por recortes de mitemas, que muitas vezes fazem com que nossa leitura se disperse e não perceba que por trás de sua poesia está um homem representativo do seu tempo, isto é, visceralmente multiplicado em dois ou mais imagens de si mesmo.
            De Quintana, tomo um poema especial para esta perspectiva: “Canção”: 

Cheguei a concha da orelha
à concha do caracol.

Escutei
vozes amadas
que eu julgava
eternamente perdidas.

Uma havia
que dentre as outras mais graves
tão clara e alta se erguia...

que eu escutei mas descobri
que era a minha própria voz:
sessenta anos havia
ou mais
que ali estava encerrada.

Meu Deus, as coisas que ela dizia!
As coisas que perguntava!
Eu deixei-as sem resposta.

As outras vozes, mais graves,
tampouco
nenhuma lhe respondia.

O mundo é um búzio oco,
menino...

mundo de vozes perdidas
e onde apenas o eco
eternamente
repete as mesmas perguntas.

           
            Trata-se de poema de forma bastante livre, assim como a constituição dos seus versos. As estrofes são variadas, o que indica uma certa liberdade formal que certamente acompanha também uma certa liberdade temática. A primeira leitura do poema não desvenda de imediato o que o está formatando, isto é, o mito de narciso. A paráfrase, bastante simples, revela que o texto recria uma imagem, ou uma brincadeira muito comum entre as crianças, pois se trata de ouvir o marulhar do côncavo das conchas. Essa cena apresenta um pouco de movimento, seguido de um quadro estático, no qual o eu-lírico apenas ouve um som e se põe a fazer considerações que repercutem no seu pensamento. Aquilo que ouve causa-lhe surpresa, mas não o movimenta o suficiente para agir. Ao ouvir as vozes do passado em substituição do marulhar, uma delas a sua própria sessenta anos antes, fica calado e não interage com nenhuma. Conclui que o mundo é um búzio oco com as mesmas perguntas de sempre, sem as respostas de sempre. A ação inicial que o poema concretiza é muito singela e remete a um contexto infantil. O eu-lírico pretende escutar alguma coisa na casca do caracol, como o fazem as crianças. São duas conchas, de materiais radicalmente diferentes – o pavilhão da orelha, que tem uma forma encaracolada para captar melhor o som, e a casca protetora da lesma cujo formato é espiralado. No poema, a cartilagem humana e a massa óssea do molusco se aproximam para unir os tempos, isto é, o presente e o passado. Sintomaticamente estas primeiras estrofes do poema são governadas por verbos no pretérito.
O poema admite uma divisão ternária concernente aos tempos verbais empregados. Comparecem, em ordem de presença, o pretérito perfeito, o pretérito imperfeito e o indicativo presente. Essa gradação encerra uma significação muito particular de o poeta lidar com suas marcas do passado. 
A ação propriamente dita é realizada no perfeito indicativo – cheguei – indicando uma ação realizada. Esse passado se manterá fechado até o momento em que na continuidade desta ação se sobrepõe uma outra, de caráter não ativo, isto é, escutei – também no pretérito perfeito. Ocorre que essa ação encerrada no passado passa a ser relativizada com o inesperado do resultado: pela audição, o eu-lírico teve acesso a um tempo que achava enterrado. A partir do pronome relativo (“que eu julgava”), que serve justamente para relativizar as partes, o tempo verbal, ainda que no pretérito, passa a ser declinado no imperfeito, indicando uma certa continuidade da ação, diminuindo o caráter definitivo do passado.  Aparecem, na seqüência, os verbos “julgava”, “havia”, “erguia”, “era”.  O ato de aproximação e de ouvir as vozes do passado, que estavam reclusas na concha, determinam uma relação especular entre o homem de hoje e a criança de ontem. A quarta estrofe coloca o inusitado da descoberta. O menino que fora retorna não pela imagem visual, típica no mito de narciso, mas pela imagem auditiva: “que eu escutei mas descobri / que era a minha própria voz: / sessenta anos havia / ou mais / que ali estava encerrada.
             Sem dúvida, muitas outras questões estão presentes neste poema de Quintana. Mas gostaria de apontar que a infância, nele, não serve apenas como resgate de um tempo feliz, à moda romântica. Ela é o decalque do original. Como cópia, deveria estar à serviço da perscrutação, no entanto o eu-lírico é categórico. Reconhece-se na voz do passado, mas nega-se ao diálogo. Certamente, o próprio poema reflete sobre essa negativa. A última estrofe determina, pela declinação temporal aliada à significação dada à Eco, a incompatibilidade entre aquilo que foi com aquilo que é.  Assim, o poeta recoloca e redimensiona um mitema muito caro ao mito de narciso, qual seja, a Eco, ninfa que desencadeia uma boa parte da dissonância identitária do rapaz. No poema, destituída de tamanha importância, resta-lhe apenas ser uma representação, porquanto está substantivada, de uma repetição inócua e estéril, pois não é capaz de responder, apenas de repetir as perguntas. Esta terceira e última parte do poema está declinada no presente do indicativo, e o faz através de um verbo de ligação, cuja significação se concentra em definir uma existência: “O mundo é um búzio oco”.
            Há, no final do poema, um sentido de pessimismo que se revela na desistência do eu-lírico em buscar sua identidade perdida da voz infantil (passados sessenta anos ou mais) que a concha do caramujo e da sua orelha lhe trazem de volta. As perguntas que sua própria voz lhe fazem ficam sem resposta e sem atenção. Apesar de saber sua, a voz do passado não lhe pertence mais. A descontinuidade entre o original e o decalque parece não ter solução.
            A mito de narciso, neste poema, perde muitos de seus mitemas “originais”, adaptando-os e redimensionando-os para um outro “ensinamento”.  Não há mais a presença direta da água como espelho sobre o qual o sujeito se debruça para se ver. A Fonte Téspia assume uma outra configuração. A “concha”, cujo simbolismo está relacionado à água, à fecundidade, à libido, ao feminino tem uma abrangência particular e individual, e sua versão como “búzio”, que também se liga aos mesmos arquétipos da lua-água, da gestação-fertilidade compreende um todo maior que ultrapassa a medida individual – o mundo. No entanto, ambos elementos simbólicos compõem, no poema, uma expressão de significado oximórico, pois o búzio é produtor do som primordial e originário das águas primevas (esse caráter primordial está colocado, implicitamente, no tempo a que o eu-lírico localiza nas vozes ouvidas – sua infância), bem como representa a noção do eu, da consciência individual, através do desenvolvimento espiralóide de suas formas, remetendo, assim, às grande evoluções interiores e exteriores (CHEVALIER; 1997).
Quintana diferentemente de muitos poetas de sua geração, renega o auto-conhecimento pela via especular. No mito, o espelho sobre o qual se dá o enamoramento e o auto-reconhecimento é feito de água, a Fonte Téspia, buscando nela a imagem visual necessária para reconhecer o eu-outro. Quando Narciso consegue identificar-se como imagem e decalque, morre de inanição ao lado das águas. No poema de Quintana, o espelho não se faz de água, mas de ar, já que a Fonte se transmuta em concha e dela saem as vozes em cima das quais o eu-lírico reconhece-se, passados sessenta anos. A imagem que propicia o auto-reconhecimento é auditiva, e não visual. Ocorre que esse narciso se recusa a se ver e a se ouvir, isto é, não quer saber de eu e eu-outro. Não morre explicitamente como o do mito, mas sua recusa equivale a uma espécie de morte, na qual se percebe um certo conformismo diante das indagações humanas. De forma inusitada, na poesia de Quintana, a poesia de Apontamentos de História Sobrenatural, há reescrituras do mito, nas quais o poeta prioriza certos segmentos, como neste caso a relação especular, mas igualmente os modifica alterando suas substâncias, como da água passa ao ar, ou da imagem visual passa à auditiva. Por outro lado, a persecução intensa que vem marcando o mito desde a modernidade, nele deixa de ser alvo a ser atingido, porque a imagem especular, descoberta sempre com surpresa, é negada. Trata-se, enfim, de um narciso escusado, porquanto se recusa a um dos mitemas mais significativos do mito para a modernidade, qual seja, esgaravatar a si mesmo.  

UM NARCISO MINIMALISTA

Gostaria, então, de ler uma seqüência de pequeníssimos poemas, englobados por um título bastante sugestivo:
Narciso (jogos)



Tudo

acontece no

espelho.



A fonte

deságua na própria

fonte.



Leio

minha mão:

livro

único.



Um deus

olho

ôlho no

ôlho.



A vida é que nos tem: nada mais

                                            temos.



A luz está

em nós: iluminamos.



A aventura

- a

    ventura –

fluir

sempre.



Nunca amar

o que não

vibra



Nunca crer

no que não

canta.



Vemos por espelho

e enigma



(mas haverá outra forma

de ver?)



o espelho dissolve

o tempo



o espelho aprofunda

o enigma



o espelho devora

a face.



            Este poema é de Orides Fontela, do livro “Teias”. Trata-se de poeta algumas vezes mencionada, mas pouco lida. No mais das vezes, ela aparece em algumas antologias com referência à sua poesia destituída de grandes discursividades, de poucas palavras, intensa, extremamente econômica. O próprio título indica a leitura a ser feita. Os jogos a que ela faz referência no título constituem, por assim dizer, alguns mitemas do mito original, como se fossem pequenos capítulos nos quais a narratividade está tão concentrada, tão coesamente tesa, que é preciso, talvez, recorrer à narração do mito, inscrito literariamente pela primeira vez em Ovídio, em suas Metamorfoses. De todos modos, Ovídio também reescreveu aquilo que ouviu ou soube por intermédio de outros.

            Os episódios, no poema de Orides, são divididos em dez, como se fossem estações de aprendizagem. A gente as percorre com uma certa curiosidade, pois todos conhecemos o destino um tanto trágico do efebo, mas sempre há uma esperança. Claro, a gente não esquece que há um distanciamento bastante considerável entre aquilo que o poema diz, melhor, sobre quem o poema diz, e o que a gente pensa da gente mesmo. No entanto, quem nunca se entregou ao saboroso olhar-se num espelho? Quem nunca perseguiu sua própria imagem para saber do que ela é feita? O poema joga com a estorieta do rapaz que se apaixona por si mesmo, já que no título a ele se refere, e, por outro lado, fala da experiência de um eu no qual nos reconhecemos como força ativa.

            A linguagem extremamente econômica causa um certo impacto porque destituí a narratividade, digamos, mais explícita; por outro lado, torna o poema um complexo de subentendidos, de pressentidos, intuídos, tudo em uma tensão que pode explodir a qualquer momento. A primeira parte, por exemplo, “Tudo / acontece no / espelho.”, encerra, de fato, o final do poema, e antecipadamente entrega ao leitor a sabedoria que emana dos mitos e das suas respectivas reatualizações. Por outro lado, esta reatualização de Orides suprime episódios com os quais estamos acostumados a lidar quando se trata de narciso.

Tal qual faz com sua linguagem, a sua releitura é sintética, permanecendo apenas aquilo que lhe interessa acentuar: a relação entre eu e eu-outro, mas sempre atendendo por uma identidade que se diz eu e nela se regozija. A multiplicidade, ou melhor, o desdobramento do eu não está vinculado a qualquer coisa fora de si mesmo: “A fonte / deságua na própria / fonte.” O que se busca está no interior e não em um reflexo de alguma exterioridade. Como movimento, trata-se de um círculo espiralado, centrífugo, porque nada deve ser deslocado de seu centro: nem a água da fonte, nem a aprendizagem que está por vir, pois a leitura será feita sobre si mesmo, configurando, assim, um cosmos que nasce a cada mirada de si mesmo.

A visão de si surge de maneira epifânica, porque o contexto relativo à deus coloca a visão como revelação divina. Corroborando, o eu-lírico olha olho no olho. Versos tão curtos, tão intensos, e por isso muito significativos. Quase uma anáfora, de verbo torna-se substantivo e que na expressão “olho no olho” adquire um sentido de interiorização profunda, lembrando, assim, a idéia do poço, elemento arquetípico que simboliza o conhecimento adquirido pelo mergulho na interioridade, na qual a borda é o segredo e a profundidade o silêncio. Quem mergulha no poço, ou faz dele referência, estreita laços com o sagrado. Esse dado da divindade, do sacro, é reiterado nas significações do verbo que comanda esta ação: olhar. As possibilidades, aqui, se abrem porque se trata não apenas do verbo, mas também do substantivo e ambos remetem a um quase sem-número de referências. No entanto, é o verbo quem faz a ação. Olhar é símbolo e instrumento de revelação. Abrindo o Dicionário de símbolos em busca do verbete “olhar”, lemos que

O olhar do criador e o olhar da criatura constituem o que propriamente está em jogo na criação, segundo a concepção sufista do mundo. Invocam-se um ao outro e não existem um para o outro senão por meio de um e de outro. Sem esses olhares, a criação perde toda a razão de ser. Mais adiante: empregar o seu olhar não é brincar com este mundo das aparências, é desvenda-lo, para descobrir nele o olhar do Criador; então o mundo é compreendido como o próprio jogo do olhar de deus, como o fluir de seu tesouro, a revelação de seus atributos. (CHEVALIER&GHEERBRANT; 1997:653).

A citação ficou um pouco extensa, mas muito explicativa, já que as estrofes seguintes, até culminância da penúltima, vão justamente desvendar os mistérios da busca incessante do eu, implicitamente intuída na leitura da mão e no olhar do olho no olho.

Os versos na seqüência do poema, constituem aforismas, como se deles brotassem verdades, conhecimentos, lições conclusivas para as perguntas corriqueiras de nossa época, que no poema não aparecem de forma explícita. De todos modos, as estrofes que se agrupam com esta significação, têm, para referendar o que mencionei, as marcas sintáticas da conclusão, isto é, os dois pontos. Leiamos: “A vida é que nos tem: nada mais / temos” e “A  luz está / em nós: iluminamos.” É de se observar que a pessoa gramatical mudou.

Nas duas estrofes anteriores, aquelas do livro e do olho, a marca é na primeira pessoa do singular. Agora, depois de feita a revelação, o eu se transforma em nós. Essa sutileza da troca de pessoa gramatical sugere uma outra compreensão do eu, ou aquilo de que a reatualização de narciso feita por Orides revela a partir de seu poço interior. Aos politicamente corretos de plantão, gostaria de lembrar que para a compreensão da identidade não é necessário estabelecer um sistema de exclusão entre o indivíduo e o grupo. Os pares antitéticos, típicos por exemplo em nosso Romantismo, aqui não tem função, porque já não dão conta da sincronicidade de situações e sentimentos. A poeta já sabia disso, pois em seu poema, o leitor é epifanicamente arremessado a um contexto diferente daquele esperado. Dissolver-se em um cosmos (“A vida é que nos tem”), anular-se a partir daquilo que lhe é mais interno, para daí espargir o que temos, isto é, a luz. Sem dúvida, trata-se de uma individualidade ainda estranha ao racionalismo do ocidente. Essas questões são muito controversas, mas mesmo assim gostaria de lembrar a opinião de Jean-Pierre Vernant:

            ... o indivíduo fora do mundo, o indivíduo no mundo. O modelo do primeiro é o renunciante indiano que, para se constituir a si próprio na sua independência e singularidade, deve exclui-se de todas as ligações sociais, separar-se da vida tal como ela é vivida pelos homens. O desenvolvimento espiritual do indivíduo tem como condição, na Índia, a renúncia ao mundo, a ruptura com todas as instituições que formam a trama da existência coletiva, o abandono da comunidade à qual pertence, o exílio num lugar de solidão definido pela sua distância relativamente aos outros, pela sua conduta, pelo seu sistema de valores. Segundo o modelo indiano, o aparecimento do indivíduo não ocorre no âmbito da vida social: implica que ele a tenha abandonado. (VERNANT et alli; 1987:25).

O que me parece é que o poema, na continuidade de suas estrofes curtas e muito prenhe de significados, ou seja, na sétima, oitava e nona, desvenda o mistério da existência e o conhecimento dela, ou seja, o “tudo” dos versos iniciais, que se dá somente no espelho, naquele olho no olho dito na quarta estrofe. A aventura, isto é, a vida propriamente dita, posto que eufemicamente revelada nos seus sememas: risco, sucesso imprevisto, acaso, sorte –  a aventura se fragmenta nos dois versos seguintes da sétima estrofe, formando a ventura, com a devida indicação do artigo definido “a” para a mesma relação antes citada, isto é: fortuna boa ou má, sorte, destino, felicidade, risco, acaso, perigo. Enfim, a vida mesma. “Fluir sempre” é a sua conseqüência natural. E o que significa esse fluir perenamente? A minha pergunta não está no texto de Orides, mas é forçoso fazê-la, pois o poema tem seguimento.

“Nunca amar / o que não / vibra // nunca crer / no que não /canta.” A resposta à minha pergunta vem antecedida de um advérbio de negação que se repete introduzindo as duas estrofes. Contudo, trata-se de uma forma visceralmente negativa: nunca, que quer dizer em tempo algum. Não é dada a possibilidade de amar qualquer coisa, a não ser aquilo que vibra. E nesse caminho, vibrar implica em ter emoção, sentimentos. Posso, então, afirmar que a vibração está no organismo vivo – portanto amar somente a vida. Por outro lado, completando a resposta, crer somente onde houver canto. Ao canto, primordialmente, está ligada a poesia. Se há canto, há poesia. Ambos contextos na mesma estrofe indiciam uma relação íntima entre as partes. Amar a vida e crer na poesia. Esta é a ventura a que se refere o poema.

Mas de onde mesmo essas verdades brotam? Creio que o narciso de Orides é, pela natureza que ela nos apresenta, muito diverso dos que tenho trabalhado. O conhecimento é dado pelo auto-conhecimento, em uma vertente que prioriza a identidade mesma. Quer dizer, não é preciso repudiar a individualidade, não é necessário buscar na diferença aquilo que falta ou pelo negativo encontrar o certo. O meu livro único me é dado pelo meu olho dentro do meu olho. Na escrita de Ovídio, e por muitos anos, vigorou a idéia de repúdio ao ensimesmamento, como se o admirar-se consistisse um pecado redimível somente com a morte. A subversão ao mito original, em Orides, ganha foros de aprendizagem, ou melhor, os tempos contemporâneos exigem uma outra leitura e conseqüente percepção de mundo a respeito do eu que se busca e se contempla. O traço do erro, do inadequado, do incorreto dá lugar à configuração de um conhecimento tão íntimo que se esparge para o outro, referido na primeira pessoa do plural com que a poeta conjuga os verbos “ter” e “iluminar”. 

A nona parte retoma o olhar, mas em uma forma abrandada, isto é, ver. A constatação de que o aprendizado sobre si conduz ao aprendizado da vida não se oferece de maneira direta e objetiva, mas por reflexos. Parece-me que aqui a poeta contraria toda uma tradição filosófica ocidental de buscar sempre não a imagem, mas o objeto em si mesmo. Posso inferir daqui também uma outra questão que tem me ocorrido sempre que releio o poema. O conhecimento de si que leva ao conhecimento do mundo, isto é, uma verdade divina sobre a vida, é tão intensamente forte que somente por reflexos podemos alcançá-la. Recontextualizando o mito da Gorgó, mais conhecida como Medusa, a visão direta sobre os mistérios causam paralisia, cegueira e morte. É preciso, como Perseu, usar de estratagemas seguros para ver o rosto da “ordem do mundo” e não perecer (como o efebo da lenda que não soube ver-se). “Espelho” e “enigma” são vocábulos que semanticamente se complementam, porque em ambos a imagem resultante não é dada de forma direta e objetiva.

A explicação contida nos versos abertos pelo uso do parêntesis subverte a ordem usual das coisas: “(mas haverá outra forma / de ver?)”. A pergunta indicada pelo uso da interrogação é, na verdade, a própria resposta, pois a gente mesma já está convencida de que não, não há outra forma de ver.

O espelho, da décima e última parte, é o espaço onde tudo acontece, já dito nos versos iniciais. “O espelho dissolve / o tempo”. No entanto, Orides desarticula as bases tradicionais de se apreender a realidade. A Física, que até os primórdios do século XX assegurava que a realidade era dada pelos vetores tempo e espaço, vê-se decomposta. Resta  o espaço onde a consciência de si se dá. Sem a soberania do tempo, o que lembra as idéias de Bachelard sobre o instante em detrimento da idéia da “duração” de Bergson, o espelho do olho no olho adensa a questão da identidade, típica nas reatualizações do mito de narciso feitas a partir da modernidade. Em Orides, ela adquire uma perspectiva que vai da intensa individualidade ao cosmos. Por isso, talvez, os dois versos finais terminando a anáfora desta última parte, ou capítulo: “o espelho devora / a face”. A face é apenas uma parte do rosto, não o seu todo. Mas é também significativamente uma metonímia da presença de Deus, aliás, nomeado na quarta parte do poema. Devorar implica, principalmente para os poetas brasileiros pós Semana de Arte Moderna, o ato antropofágico tão maravilhosamente imaginado por Oswald de Andrade. Pela antropofagia podemos amalgamar as diferenças, tornando-as  partes de nós mesmos, e, principalmente, adquirir as virtudes que desejamos. Os versos finais, sintomaticamente, vêm graficamente demarcados em um alinhamento diferenciado dos demais.

Narciso deixou de ser apenas um rapaz que se perdeu na autocontemplação e que foi punido com a morte por não ter atendido o apelo da natureza. Também não é mais um indício de autocentramento inócuo e sem sentido. Os mitos se reatualizam porque ainda nos falam de nossos desejos, de nossos destinos, de nossas inquietações. E a poesia ainda é palco para essas revelações especulares.



BIBLIOGRAFIA:



FONTELA, Orides. Teia. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

DURAND, Gilbert. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1986.

VERNANT, Jean-Pierre. A morte nos olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

VERNANT, Jean-Pierre et alli. Indivíduo e poder. Lisboa: Edições 70, 1987.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

LYRA, Pedro. A poesia da geração 60. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.        











[1] MEIRELES, Cecília. Dispersos. In.: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 200. Todos os poemas citados neste trabalho são retirados desta edição e serão indicados apenas com o número da página.

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