[de Safo]
Mais verde que uma erva
Igual aos deuses esse homem
me parece: diante de ti
sentado, e tão próximo, ouve
a doçura da
tua voz,
e o teu riso claro e solto. Pobre
de mim: o
coração me bate
de assustado. Num ápice te vejo
e a voz se
me vai;
a língua paralisa; um arrepio
de fogo,
fugaz e fino,
corre-me a carne; enevoados
os olhos;
tontos os ouvidos.
O suor me toma, um tremor
me prende.
Mais verde sou
do que uma erva – e de mim
não me
parece a morte longe (...)
O ramo
A quem, marido amado, te comparo?A dócil ramo, amado, te comparo.
Maçã
menina
No alto do ramo
alta no ramo mais
alto,
uma tão rosa maçã:
esqueceram-na os
apanhadores
de fruta.
Esqueceram-na?
Não! Mãos não tiveram
para a colher.
Olvido
Morte, inércia de sono
para ti, silêncio
de qualquer
memória
para sempre;
não mais, não,
alcançarás as
rosas de Piéria.
escura e
desatinada,
vaguearás
pelo Hades
não mais vista
de ninguém,
sempre às
cegas, sempre
por entre sombras
de corpos, obscuras
aparências só.
[Catulo]
Tordo, prazer de minha namorada,
Brinquedo vivo que ela leva ao seio
E que incita a bicadas doídas,
Com a ponta do dedo, quando quer
- ó, meu bem, minha luz, meu bem-querer -
distrair-se com algo divertido,
para acalmar a dor, quem sabe? De uma
paixão voraz – pudesse eu brincar
com você, como o faz a sua dona,
pra amortecer as dores do meu peito!
(...)
eu lhe peço, doce Ipsitila,
delícia e graça da minha vida,
que você marque um encontro à tarde,
em sua casa. Se sim, não tranque
a porta, por favor, e não pense
em sair, em hipótese alguma:
permaneça em casa e se prepare
para nove trepadas seguidas.
Mas, se achar melhor, vou neste instante:
Almoçado e deitado, já estou
Perfurando a túnica e o manto!
(...)
Um mover d’olhos, brando e piadoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;
Um desejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa, um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento;
Esta foi a celeste fermosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.
[Fernando Pessoa]
Isto
Dizem que finjo ou
minto
Tudo que escrevo.
Não.Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em
meio
Do que não está ao
pé,Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem
lê!
[Wally Salomão]
fábrica do poema
sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa
palavra por palavra,tornei-me perito em extrair faíscas das
britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por
fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê dovento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera
sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos
moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas,
oxímoros sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o
recalcado?
(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninhae abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma
expressão
por demais definida, de sintomatologia
cerrada:
assim numa operação de supressão
mágica vou rasurá-la daqui do poema.)
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará?
[Olavo Bilac]
Inania verba
Ah! Quem há de
exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca
não diz, o que a mão não escreve?- Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...
O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:
A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.
Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! Quem há-de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? E o céu que foge à mão que se levanta?
E a ira muda? E o asco mudo? E o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?!
[augusto dos anjos]
O martírio do artista
Arte ingrata! E conquanto, em
desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos
lhe arda,Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!
Tarda-lhe a Idéia! A
inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o
papel, violento,Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!
Tenta chorar e os olhos sente
enxutos!...
É como o paralítico que, à
mínguaDa própria voz e na que ardente lavra
Febre de em vão falar, com os
dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a
língua,
E não lhe vem à boca uma
palavra!
[Mário Quintana]
O poema
Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página
Ainda em branco. Mas ele, aquela noite, não escreveu
nada. Para quê? Se por ali já havia passado o frêmito
e o mistério da vida ...
o
poema
Um
poema como um gole dágua bebido no escuro.Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.
Ah, sim, a velha poesia ...
Poesia, a minha velha amiga ...
eu entrego-lhe tudo
a que os outros não dão importância nenhuma ...
a saber:
o silêncio dos velhos corredores
uma esquina
uma lua
(porque há muitas, muitas luas ...)
o primeiro olhar daquela primeira namorada
que ainda ilumina, ó alma,
como uma tênue luz de lamparina,
a tua câmara de horrores.
E os grilos?
Sim, os grilos ...
Os grilos são os poetas mortos.
Entrego-lhe grilos aos milhões um lápis verde um retrato
amarelecido um velho ovo de costura os teus pecados as
reivindicações as explicações – menos
o dar de ombros e os risos contidos
mas
todas as lágrimas que o orgulho estancou na fonte
as explosões de cólera
o ranger de dentes
as alegrias agudas até o grito
a dança dos ossos ...
Pois bem,
às vezes
de tudo quanto lhe entrego, a Poesia faz uma coisa que
parece que nada tem a ver com os ingredientes mas que
tem por isso mesmo um sabor total: eternamente esse
gosto de nunca e de sempre.
Se eu fosse um padre
Se
eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não
falaria em Deus nem no Pecado
-
muito menos no Anjo Rebelado
e
os encantos das suas seduções,
não
citaria santos e profetas:
nada
das suas celestiais promessas
ou
das suas terríveis maldições ...
S
eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
Desses
que desde a infância me embalaram
E
quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma
...
e um belo poema – ainda que de Deus se aparte –
sempre
coloca o Poeta face a face com Deus!
Segundo poema didático
Nós
ainda estamos resolvendo os assuntos de Roma,
nós
somos Roma
e
o velho Egito e Nínive e Babilônia ...
E,
Apesar
das brincadeiras laboratoriais,
Ainda
somos gerados da mesma maneira.
Nada
nasce do ar.
Os
próprios deuses,
tão
diversos,
são,
conforme
a vez, o tempo, a ocasião,
as
fantasias sucessivamente usadas e despidas
pelo
Deus único e verdadeiro.
Uma
divina mascarada? Não!
Ele
não tem a mínima culpa dos costureiros.
Por
trás dos disfarces
-
no meio de todos e de tudo -
sorri,
complacentemente,
o
Deus Nu.
Sorri,
sobretudo,
para
o poeta que toca o pandeiro
a
lira
o
pífano
o
violoncelo profundo
enquanto,
ao
pé de todas as cruzes,
soldados
jogam aos dados
os
destinos de Roma e do mundo.
Poema
O grilo procura
No
escuro
O
mais puro diamante perdido.
O
grilo
Com
as suas frágeis baterias de vidro
Perfura
As
implacáveis solidões noturnas.
E
se isso que tanto buscas só existe
Em
tua límpida loucura
-
que importa? -
Exatamente
isto
É
o teu diamante mais puro!
Poema olhando um muro
Do
escuro
do meu quarto
-
imóvel como um felino, espio
a
lagartixa imóvel sobre o muro: mal sabe ela
da
sua graça ornamental, daquele
verde
intenso
na
lividez mortal
da
pedra ... ah, nem sei eu também o que procuro,
há tanto ...
nesta
minha eterna espreita!
Pertenço
acaso à raça odiada dos mutantes?
Ou
sou,
talvez
-
em meio às
espantosas aparências de algum mundo estranho –
um
espião que houvesse esquecido o seu código,
a
sua sigla, tudo ...
- menos
a
gravidade da sua missão!
[Orides Fontela]
Oposição
Na
oposição se completam
os arcanjos
contrários
sendo a
mesma existência
em dois
sentidos.
(Um, severo e nítido
na negação
pura
de seu ser.
O outro
em adoração
firmado.)
Não se
contemplam e se sabem
um mesmo
enigma cindido
combatem-se,
mas abraçando-se
na unidade
da essência.
Interfecundam-se
no mesmo
bloco de
ser e de silêncio
coluna viva
em que a memória
cindiu-se
em dois horizontes.
[Hilda Hilst]
XV
Como se tu coubesses
Na crista
No topo
No anverso do osso
Tento prender teu corpo
Tua montanha, teu reverso.
Como se a boca buscasse
Seus avessos
Assim te busco
Torsão de todas as funduras.
Persecutória te sigo
Amarras, músculo.
E sempre te assemelhas
A tudo que desliza, tempo,
Correnteza.
Na minha boca. Nos ocos.
No chanfrado nariz.
Rio abaixo deslizas, limo
Toco, em direção a mim.
(Da morte. Odes mínimas)
XXX
Juntas. Tu e eu.
Duas adagas
Cortando o mesmo céu.
Dois cascos
Sofrendo as águas.
E as mesmas perguntas.
Juntas. Duas naves
Números
Dois rumos
À procura de um deus.
E as mesmas perguntas
No sempre
No pasmoso instante.
Ah, duas gargantas
Dois gritos
O mesmo urro
De vida, morte.
Dois cortes.
Duas façanhas.
E uma só pessoa.
(da morte. Odes mínimas)
No conocía la poesía de Hilda Hilst,pero me parece una poeta muy buena por los poemas que he podido leer. Gracias por difundir poesia al mundo...
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