quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

estudantes valencianos e a polícia


Universitários de Valencia, Espanha


                Na última segunda-feira, dia 20, por volta das sete da noite, alguns estudantes do curso de história e geografia da universidade de Valencia, Espanha, saíram às ruas para protestar. Não passavam de 30; e a polícia que deveria cuidar da ordem e da segurança dos cidadãos, repreendeu os poucos estudantes com bombas, pauladas, socos, pontapés. Os meninos e meninas, que queriam apenas protestar, não tinham nenhuma arma letal nem escudos de proteção; possuíam cadernos e eram estes cadernos que levantavam como “bandeira”. Do outro lado, os agentes policiais vestiam protetores acolchoados no peito, nos membros, nos pés e mãos, e capacetes com viseiras nas cabeças. Eu contei mais de 7 camburões dentro dos quais brotavam como moscas os policiais que atacavam covardemente os 30 e poucos estudantes que iniciaram o protesto. Prenderam menores de idade e um bocado de estudantes atônitos com tamanha violência. Eu estava ali e vi as cenas com espanto e muito medo. E contra o que protestavam os estudantes de história e geografia? Contavam que os cortes na área de educação, na Espanha do partido PP (leia-se franquismo e direita) com o atual presidente iria trazer prejuízos ao país porque estavam cortando as bolsas de estudos aos alunos necessitados; também protestavam pela falta de papel higiênico nos banheiros e pela ausência de calefação nas salas de aula. E por isso apanharam da polícia...

                Felizmente o tiro saiu pela culatra. Depois desta noite, em todos os dias desta semana que se acaba, os estudantes do país inteiro têm se manifestado contra a violência deste governo (tem apenas 2 meses) que já começa assim. E a polícia, que se viu em maus lençóis com a indignação da população, agora sim exerce seu papel de cuidar da pessoas sem agredi-las.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

um breve estudo sobre o mito de narciso em cecília meireles

(este ensaio foi apresentado sob forma oral no seminário internacional de história da literatura - pucrs, em outubro de 2005, e publicado nos respectivos anais)

A busca de um retrato nem sempre natural:

Um breve estudo sobre o mito de narciso em Cecília Meireles[1]



            O mito de narciso tem se configurado, a partir da modernidade, como caso exemplar para a necessidade crescente de constituição identitária. Tanto o plano coletivo (como as noções de nacionalidade), quanto o plano individual (como as faces de um indivíduo) buscam nos mitemas que compõem o mito um alicerce sobre o qual os poetas constroem seus respectivos imaginários identitários. Ocorre que a poesia brasileira do século XX não suporta mais uma organização sistematizada e homogeinizante do ponto de vista tradicional encontrável na maioria das histórias literárias que se tem produzido. Priorizar o aspecto temático em detrimento de uma datação rígida e pontual, bem como de uma aglutinação de nomes em torno de uma estética literária, precisa ser considerada. Assim, é forçoso apontar que a poesia produzida pós Semana de Arte Moderna apresenta traços bastante característicos relativos à errância identitária. Do ponto de vista individual, essa busca identitária assume imagens sobre a infância, sobre a velhice, sobre as deformidades corporais, etc. Corrobora nessa persecução dos eus-líricos uma certa uniformidade temática – o mito de narciso. A poesia de Cecília Meireles apresenta essas características. Assim, esse ensaio pretende discutir algumas marcas relativas ao mito de narciso na produção ceciliana.



A POESIA DOS ESPELHOS

            A poesia de Cecília Meireles, sem dúvida, órbita poucos temas e/ou assuntos. O que mais interessa à poeta é a poeta. O narcisismo conforma as mais diversas imagens propostas pelo eu-lírico. Ora é a nuvem que lhe serve de espelho, ora são as águas salgadas que lhe devolvem imagens distorcidas de seu rosto marcado pelas feridas do tempo. O espelho, para Cecília, assume formas diversas e inusitadas, mas sempre carregadas de uma melancolia aliada a uma certa resignação feliz em ver-se diferente do decalque que o reflexo especular lhe oferece. Eis um poema exemplar:

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

visita: faculdad de filosofia y letras - córdoba - españa

no último dia 10, visitando minha querida amiga, maría angéles h. álvarez, professora de teoria literária e literatura comparada na universidade de córdoba, aproveitei para reafirmar o interesse em um convênio bilateral entre nossos cursos de pós-graduação.

com o apoio da profa dra rubesile cunha, coordenadora da pós-graduação em letras do ila/furg, participei de duas reuniões com a apresentação carinhosa de maría ángeles; a primeira, para tratar das possibilidades acadêmicas relativas à graduação e à pós-graduação com o decano da faculdad de filosofia y letras - prof. dr. eulálio fernández e com a diretora do depto. de ciencias del linguaje - profa. maría luiza caler vaquera; a segunda com o vicerrector de la oficina de relaciones internacionales - prof. dr. antonio ruiz para tratar das questões econômicas, acadêmicas e demais assuntos relativos aos convênios internacionais. adianto que as possibilidades de convênios com esta universidade são muito promissoras, tanto para alunos de graduação como os de pós-graduação.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

poemas de Drummond em Boitempo


(para ler acompanhando o texto sobre drummond e autobiografia)

Poemas de Carlos Drummond de Andrade:

            Aquele córrego
Tão alegre este riacho.
Riacho? Gota d’água em tacho
Nem necessita pinguela
Para chegar à outra margem.
Um salto: salto a corrente.
É ribeirão de presépio,
É mar de quem nunca viu
O mar, nem prevê o mar. 

Tão festeiro, tão brincante
De lambaris rabeando
Na transparência da linfa.
Tão espelho, tão pedrinhas
De luz chispante em arestas.
Que nome ele tem? Não tem
Nome nenhum, tão miudinho. 

Ele é. Pois é, qual riacho
Qual nada. Ele é mesmo corgo
Ou nem isso. É meu desejo
De água que não me afogue
E onde eu veja minha imagem
Me descobrindo, indagando:
Que menino é esse aí? 

Que menino é este aqui?
Não sei como responder.
A agüinha treme, trotina
Sob o calhau atirado
Por meu irmão. Ou por mim?
Melhor é deixar o corgo
Brincar de ser rio e ir
Passeando lambaris. 

Narciso jogando em seu espelho


NARCISO JOGANDO EM SEU ESPELHO
(uma incerta poesia contemporânea)[1]

Profa. Dra. Raquel R. Souza
PG-Letras – FURG

Muito tem se falado e escrito sobre a necessidade de novos critérios para a História das Literaturas. Eu mesma, ainda que circunstancialmente, já tratei disso quando apresentei uma leitura sobre a poesia de Cecília Meireles e o temário da infância[2]. É consenso que a visão totalizadora e unificada, ainda tradicionalmente apresentada nos cursos de graduação, não dá conta dos inúmeros matizes que a literatura, em especial a poesia, contemporânea apresenta. As tentativas de traçar panoramas abrangentes sobre a produção poética brasileira após Semana de Arte Moderna, em 1922, tem frustrado porque inevitavelmente priorizam certos temas e poetas mais afeitos aos conceitos de “representativos” dos seus autores, com os quais, aliás, não preciso concordar. Por outro lado, a parte estas questões de cunho ideológico, basta também lembrar que a própria noção de História, de Tempo, de Espaço há muito foi pulverizada, não só pela Filosofia, como pelas ditas Ciências Naturais, como a Física. Então, parece que por parte da crítica especializada, e por todos aqueles que se dedicam ao estudo da poesia, parece que vamos meio à deriva, meio sem saber onde está a identidade da poesia, vamos nós também na errância de uma identidade que se multiplica indefinidamente nestes anos de alta modernidade.
Como num reflexo de outro reflexo, a poesia se dispersa e a crítica-teoria que vai atrás também se dispersa em multiplicidades às vezes impensáveis.  Sobre a produção de poesia, muitas são as antologias, cujo cuidado principal parece residir em uma espécie de historicização da poesia brasileira, notadamente a partir dos anos sessenta do século XX. Ao lado das antologias paralelamente correm ensaios que intentam a mesma coisa. Dos mais fecundos, cito dois: “Crítica, razão e lírica”, de José Guilherme Merquior, e “Sincretismo”, de Pedro Lyra.

Eu, particularmente, entendo que um caminho fecundo e prazeroso para estudar poesia brasileira é buscar alguma identidade, ainda que imatura e multifacetada, uma identidade que se torne plural e que admita inclusões variadas – ou seja, uma identidade que não é bem uma identidade nos moldes usuais. Parto, então, do que para mim é um princípio quase metodológico. A poesia brasileira, notadamente a partir do século XX, perseguiu dois vieses que se cruzam e que se bifurcam, com os quais tenho insistentemente trabalhado em minhas pesquisas. Refiro-me à dois blocos temáticos, que expressam cada um a seu modo as crises identitárias a que temos sido submetidos desde o início da modernidade. A lírica, especialmente, tem apresentado um eu-lírico em busca de reflexos nos quais possa se reconhecer, ao mesmo tempo em que a própria palavra poética se reflete numa angustiosa e, ainda assim, deliciosa perseguição das suas essências.
Vejo nisso revivências de certos mitos fundacionais da própria noção de modernidade, e que podem ser resumidamente citados pela recorrência dos mitos de Narciso, de Orfeu e do Labirinto, todos os três originários da Grécia e que mesclados a outros tantos mitos forjaram uma espécie de “cultura ocidental” muito presente em nossos dias de modernidade líquida, alta modernidade, sobremodernidade, pós-modernidade e outras formas correlatas de designar a contemporaneidade. Aliás, Durand já atentou para a ocorrência de trocas de mitemas entre os mitos, bem como de acréscimos e decréscimos de mitemas. O seu conceito de bacia semântica, que inclui conceitos de perenidade, derivações e desgaste do mito, indica caminhos para se entender melhor aquilo que nossos poetas fazem e que nós, mesmo sem ter exata consciência disso, também fazemos, pois neles, nos poetas, reconhecemos nossos sentimentos e destinos. A lírica, sabemos, surgiu nos primórdios gregos, com Safo, Píndaro e Anacreonte, todos três preocupados com uma certa noção de indivíduo que priorizava o sentimento particular em detrimento da coletividade impressa no épico e no dramático. Então, para mim o caminho natural é seguir as reescritas e redimensionamentos dados ao jogo especular, no qual brotam o sujeito confessional e a poesia. Trata-se do duplo, no seu viés particular e no seu viés profissional.
            Não tenho certeza se essa perspectiva que adoto, quer dizer, buscar entender a poesia em um movimento cultural maior mediada pelo imaginário, é a melhor ou a mais indicada para se trabalhar com poesia; também não tenho cristalizada a idéia de que o poema não deva ser tratado assim tão cientificamente como usualmente se faz nos meios acadêmicos. Eu, particularmente, adoto algumas idéias de Bachelard como forças motrizes para ler poesia. Uma delas é o binômio ressonância e repercussão. Essas idéias implicam, necessariamente, que o crítico seja prioritariamente um leitor, mas não uma entidade abstrata, na qual cabem inúmeras pessoas sem rosto definido. De certa forma, estou dizendo que é necessário assumir uma identidade pessoal diante do poema de outrem, e para falar sobre ele, o poema, é preciso assumir essa individualidade, dizendo-se, nomeando-se, usando-se como caixa de ressonância, para que o poema encontre condições de ser e de dizer aquilo a que veio. Quer dizer, em meio a tantas preocupações com o coletivo, eu assumo minha individualidade e a reafirmo na medida em que elejo como material temático as questões identitárias dentro da lírica, quer no seu contexto narcísico, quer nas suas tramas metapoéticas. Eis meu labirinto profissional! Por ora, fico com narciso (mas necessariamente não com o narcisismo!).
Durand diz que:
Não há mito inicial, puro (...). Qualquer mito não é senão o conjunto de suas lições, poder-se-ia mesmo dizer de suas leituras(...) O mito decompõem-se em alguns mitemas indispensáveis que lhe conferem sincronicamente o sentido arquetípico, mas, diacronicamente, ele é apenas constituído pelas lições circunstanciadas por esse acolhimento, essa leitura muito particularizada (...) Há que sublinhar este paradoxo, em que a permanência só é conferida pelas variações. (DURAND; 1996:155). 
            Gostaria, então, de ler uma seqüência de pequeníssimos poemas, englobados por um título bastante sugestivo:
Narciso (jogos)



Tudo
acontece no
espelho.

A fonte
deságua na própria
fonte.

Leio
minha mão:
livro
único.

Um deus
olho
ôlho no
ôlho.

A vida é que nos tem: nada mais
                                            temos.

A luz está
em nós: iluminamos.

A aventura
- a
    ventura –
fluir
sempre.

Nunca amar
o que não
vibra

Nunca crer
no que não
canta.

Vemos por espelho
e enigma

(mas haverá outra forma
de ver?)

o espelho dissolve
o tempo

o espelho aprofunda
o enigma

o espelho devora
a face.




            Este poema é de Orides Fontela, do livro “Teias”. Trata-se de poeta algumas vezes mencionada, mas pouco lida. No mais das vezes, ela aparece em algumas antologias com referência à sua poesia destituída de grandes discursividades, de poucas palavras, intensa, extremamente econômica. O próprio título indica a leitura a ser feita. Os jogos a que ela faz referência no título constituem, por assim dizer, alguns mitemas do mito original, como se fossem pequenos capítulos nos quais a narratividade está tão concentrada, tão coesamente tesa, que é preciso, talvez, recorrer à narração do mito, inscrito literariamente pela primeira vez em Ovídio, em suas Metamorfoses. De todos modos, Ovídio também reescreveu aquilo que ouviu ou soube por intermédio de outros.

No plano do mito consta que Narciso é fruto da união forçada de Céfiso (deus-rio) com a ninfa Liríope. Narciso nasceu com extrema beleza, o que deixou sua mãe muito preocupada com seu destino, levando-a a consultar o adivinho Tirésias, que, perguntado sobre a vida do rapaz responde que ele viverá muito se ele não se conhecer. Ele segue, então, solitariamente. Ocorre que a ninfa Eco apaixona-se perdidamente pelo efebo e o segue de longe em suas caçadas, mas é incapaz de pronunciar o nome do amado porque ela não possui voz própria – ela só pode repetir as últimas palavras pronunciadas por Narciso. A ninfa foi castigada por Hera, esposa de Zeus, porque a jovem, com sua tagarelice, distraía a deusa enquanto Zeus fazia suas conquistas amorosas com outras ninfas. Ao descobrir o estratagema, a deusa a castiga, condenando-a a só repetir as últimas sílabas das palavras que ouvia. Por isso Eco não podia expressar seu amor por Narciso. Um dia o rapaz percebe que alguém o segue e que repete suas últimas palavras. Chama-a e pergunta por que ela o evita. Ao tentar responder Eco apenas consegue repetir as palavras do amado e, desesperada por não conseguir se fazer entender, abraça-o e é rejeitada. Narciso lhe diz: “Para longe com seus braços, eu prefiro morrer a deixar que você me toque”. Sendo rejeitada, a moça refugia-se nos bosques e montanhas e passa a morar sozinha até que, sofrendo as torturas do amor rejeitado, definha e se transforma em pedra, ficando somente o lamento da sua voz que repete as sílabas finais das palavras.

As outras ninfas também tentaram se aproximar do rapaz e foram repelidas, por isso invocaram a justiça, pedindo a Nêmesis que as vingassem: “que também ele possa amar e jamais possuir o objeto de seu amor”. Atendendo aos pedidos, depois de uma caçada, a deusa conduz Narciso a um recanto no qual, ao sentir sede, ele se inclina sobre uma fonte de águas cristalinas. Ao beber da água virgem, fica encantado com a imagem que vê nas águas e se apaixona por tão bela figura. A partir daí não sai de perto das águas da fonte Téspias sempre buscando um contato com a imagem adorada. Passa a não se alimentar e começa a definhar. Mesmo sabendo que se tratava de sua própria imagem o que via refletida nas águas límpidas, morre perdidamente apaixonado por si mesmo sem jamais conseguir tocar-se. No lugar onde jazeu nasceu uma linda flor de poderes inebriantes que recebeu o nome de narciso.

Originalmente, todo mito encerra uma aprendizagem, e este ilustra o poder de Nêmesis que restabelece a justiça universal. Narciso foi punido por ter desejado subtrair-se à lei comum e por ter se recusado a amar alguém.

            Retornando ao poema de Orides, os episódios são divididos em dez, como se fossem estações de aprendizagem. A gente as percorre com uma certa curiosidade, pois todos conhecemos o destino um tanto trágico do efebo, mas sempre há uma esperança. Claro, a gente não esquece que há um distanciamento bastante considerável entre aquilo que o poema diz, melhor, sobre quem o poema diz, e o que a gente pensa da gente mesmo. No entanto, quem nunca se entregou ao saboroso olhar-se num espelho? Quem nunca perseguiu sua própria imagem para saber do que ela é feita? O poema joga com a estorieta do rapaz que se apaixona por si mesmo, já que no título a ele se refere, e, por outro lado, fala da experiência de um eu no qual nos reconhecemos como força ativa.

            A linguagem extremamente econômica causa um certo impacto porque destituí a narratividade, digamos, mais explícita; por outro lado, torna o poema um complexo de subentendidos, de pressentidos, intuídos, tudo em uma tensão que pode explodir a qualquer momento. A primeira parte, por exemplo, “Tudo / acontece no / espelho.”, encerra, de fato, o final do poema, e antecipadamente entrega ao leitor a sabedoria que emana dos mitos e das suas respectivas reatualizações. Por outro lado, esta reatualização de Orides suprime episódios com os quais estamos acostumados a lidar quando se trata de narciso.

Tal qual faz com sua linguagem, a sua releitura é sintética, permanecendo apenas aquilo que lhe interessa acentuar: a relação entre eu e eu-outro, mas sempre atendendo por uma identidade que se diz eu e nela se regozija. A multiplicidade, ou melhor, o desdobramento do eu não está vinculado a qualquer coisa fora de si mesmo: “A fonte / deságua na própria / fonte.” O que se busca está no interior e não em um reflexo de alguma exterioridade. Como movimento, trata-se de um círculo espiralado, centrífugo, porque nada deve ser deslocado de seu centro: nem a água da fonte, nem a aprendizagem que está por vir, pois a leitura será feita sobre si mesmo, configurando, assim, um cosmos que nasce a cada mirada de si mesmo.

A visão de si surge de maneira epifânica, porque o contexto relativo à deus coloca a visão como revelação divina. Corroborando, o eu-lírico olha olho no olho. Versos tão curtos, tão intensos, e por isso muito significativos. Quase uma anáfora, de verbo torna-se substantivo e que na expressão “olho no olho” adquire um sentido de interiorização profunda, lembrando, assim, a idéia do poço, elemento arquetípico que simboliza o conhecimento adquirido pelo mergulho na interioridade, na qual a borda é o segredo e a profundidade o silêncio. Quem mergulha no poço, ou faz dele referência, estreita laços com o sagrado. Esse dado da divindade, do sacro, é reiterado nas significações do verbo que comanda esta ação: olhar. As possibilidades, aqui, se abrem porque se trata não apenas do verbo, mas também do substantivo e ambos remetem a um quase sem-número de referências. No entanto, é o verbo quem faz a ação. Olhar é símbolo e instrumento de revelação. Abrindo o Dicionário de símbolos em busca do verbete “olhar”, lemos que

O olhar do criador e o olhar da criatura constituem o que propriamente está em jogo na criação, segundo a concepção sufista do mundo. Invocam-se um ao outro e não existem um para o outro senão por meio de um e de outro. Sem esses olhares, a criação perde toda a razão de ser. Mais adiante: empregar o seu olhar não é brincar com este mundo das aparências, é desvenda-lo, para descobrir nele o olhar do Criador; então o mundo é compreendido como o próprio jogo do olhar de deus, como o fluir de seu tesouro, a revelação de seus atributos. (CHEVALIER&GHEERBRANT; 1997:653).

A citação ficou um pouco extensa, mas muito explicativa, já que as estrofes seguintes, até culminância da penúltima, vão justamente desvendar os mistérios da busca incessante do eu, implicitamente intuída na leitura da mão e no olhar do olho no olho.

Os versos na seqüência do poema, constituem aforismas, como se deles brotassem verdades, conhecimentos, lições conclusivas para as perguntas corriqueiras de nossa época, que no poema não aparecem de forma explícita. De todos modos, as estrofes que se agrupam com esta significação, têm, para referendar o que mencionei, as marcas sintáticas da conclusão, isto é, os dois pontos. Leiamos: “A vida é que nos tem: nada mais / temos” e “A  luz está / em nós: iluminamos.” É de se observar que a pessoa gramatical mudou.

Nas duas estrofes anteriores, aquelas do livro e do olho, a marca é na primeira pessoa do singular. Agora, depois de feita a revelação, o eu se transforma em nós. Essa sutileza da troca de pessoa gramatical sugere uma outra compreensão do eu, ou aquilo de que a reatualização de narciso feita por Orides revela a partir de seu poço interior. Aos politicamente corretos de plantão, gostaria de lembrar que para a compreensão da identidade não é necessário estabelecer um sistema de exclusão entre o indivíduo e o grupo. Os pares antitéticos, típicos por exemplo em nosso Romantismo, aqui não tem função, porque já não dão conta da sincronicidade de situações e sentimentos. A poeta já sabia disso, pois em seu poema, o leitor é epifanicamente arremessado a um contexto diferente daquele esperado. Dissolver-se em um cosmos (“A vida é que nos tem”), anular-se a partir daquilo que lhe é mais interno, para daí espargir o que temos, isto é, a luz. Sem dúvida, trata-se de uma individualidade ainda estranha ao racionalismo do ocidente. Essas questões são muito controversas, mas mesmo assim gostaria de lembrar a opinião de Jean-Pierre Vernant:

            ... o indivíduo fora do mundo, o indivíduo no mundo. O modelo do primeiro é o renunciante indiano que, para se constituir a si próprio na sua independência e singularidade, deve exclui-se de todas as ligações sociais, separar-se da vida tal como ela é vivida pelos homens. O desenvolvimento espiritual do indivíduo tem como condição, na Índia, a renúncia ao mundo, a ruptura com todas as instituições que formam a trama da existência coletiva, o abandono da comunidade à qual pertence, o exílio num lugar de solidão definido pela sua distância relativamente aos outros, pela sua conduta, pelo seu sistema de valores. Segundo o modelo indiano, o aparecimento do indivíduo não ocorre no âmbito da vida social: implica que ele a tenha abandonado. (VERNANT et alli; 1987:25).

O que me parece é que o poema, na continuidade de suas estrofes curtas e muito prenhe de significados, ou seja, na sétima, oitava e nona, desvenda o mistério da existência e o conhecimento dela, ou seja, o “tudo” dos versos iniciais, que se dá somente no espelho, naquele olho no olho dito na quarta estrofe. A aventura, isto é, a vida propriamente dita, posto que eufemicamente revelada nos seus sememas: risco, sucesso imprevisto, acaso, sorte –  a aventura se fragmenta nos dois versos seguintes da sétima estrofe, formando a ventura, com a devida indicação do artigo definido “a” para a mesma relação antes citada, isto é: fortuna boa ou má, sorte, destino, felicidade, risco, acaso, perigo. Enfim, a vida mesma. “Fluir sempre” é a sua conseqüência natural. E o que significa esse fluir perenamente? A minha pergunta não está no texto de Orides, mas é forçoso fazê-la, pois o poema tem seguimento.

“Nunca amar / o que não / vibra // nunca crer / no que não /canta.” A resposta à minha pergunta vem antecedida de um advérbio de negação que se repete introduzindo as duas estrofes. Contudo, trata-se de uma forma visceralmente negativa: nunca, que quer dizer em tempo algum. Não é dada a possibilidade de amar qualquer coisa, a não ser aquilo que vibra. E nesse caminho, vibrar implica em ter emoção, sentimentos. Posso, então, afirmar que a vibração está no organismo vivo – portanto amar somente a vida. Por outro lado, completando a resposta, crer somente onde houver canto. Ao canto, primordialmente, está ligada a poesia. Se há canto, há poesia. Ambos contextos na mesma estrofe indiciam uma relação íntima entre as partes. Amar a vida e crer na poesia. Esta é a ventura a que se refere o poema.

Mas de onde mesmo essas verdades brotam? Creio que o narciso de Orides é, pela natureza que ela nos apresenta, muito diverso dos que tenho trabalhado. O conhecimento é dado pelo auto-conhecimento, em uma vertente que prioriza a identidade mesma. Quer dizer, não é preciso repudiar a individualidade, não é necessário buscar na diferença aquilo que falta ou pelo negativo encontrar o certo. O meu livro único me é dado pelo meu olho dentro do meu olho. Na escrita de Ovídio, e por muitos anos, vigorou a idéia de repúdio ao ensimesmamento, como se o admirar-se consistisse um pecado redimível somente com a morte. A subversão ao mito original, em Orides, ganha foros de aprendizagem, ou melhor, os tempos contemporâneos exigem uma outra leitura e conseqüente percepção de mundo a respeito do eu que se busca e se contempla. O traço do erro, do inadequado, do incorreto dá lugar à configuração de um conhecimento tão íntimo que se esparge para o outro, referido na primeira pessoa do plural com que a poeta conjuga os verbos “ter” e “iluminar”. 

A nona parte retoma o olhar, mas em uma forma abrandada, isto é, ver. Não quero aqui me alongar sobre esta questão tão espinhosa quanto profícua. Basta-me, apenas, a ressalva de que o verbo “ver” está conjugado na primeira do plural. A constatação de que o aprendizado sobre si conduz ao aprendizado da vida não se oferece de maneira direta e objetiva, mas por reflexos. Parece-me que aqui a poeta contraria toda uma tradição filosófica ocidental de buscar sempre não a imagem, mas o objeto em si mesmo. Posso inferir daqui também uma outra questão que tem me ocorrido sempre que releio o poema. O conhecimento de si que leva ao conhecimento do mundo, isto é, uma verdade divina sobre a vida, é tão intensamente forte que somente por reflexos podemos alcançá-la. Recontextualizando o mito da Gorgó, mais conhecida como Medusa, a visão direta sobre os mistérios causam paralisia, cegueira e morte. É preciso, como Perseu, usar de estratagemas seguros para ver o rosto da “ordem do mundo” e não perecer (como o efebo da lenda que não soube ver-se). “Espelho” e “enigma” são vocábulos que semanticamente se complementam, porque em ambos a imagem resultante não é dada de forma direta e objetiva.

A explicação contida nos versos abertos pelo uso do parêntesis subverte a ordem usual das coisas: “(mas haverá outra forma / de ver?)”. A pergunta indicada pelo uso da interrogação é, na verdade, a própria resposta, pois a gente mesma já está convencida de que não, não há outra forma de ver.

O espelho, da décima e última parte, é o espaço onde tudo acontece, já dito nos versos iniciais. “O espelho dissolve / o tempo”. No entanto, Orides desarticula as bases tradicionais de se apreender a realidade. A Física, que até os primórdios do século XX assegurava que a realidade era dada pelos vetores tempo e espaço, vê-se decomposta. Resta  o espaço onde a consciência de si se dá. Sem a soberania do tempo, o que lembra as idéias de Bachelard sobre o instante em detrimento da idéia da “duração” de Bergson, o espelho do olho no olho adensa a questão da identidade, típica nas reatualizações do mito de narciso feitas a partir da modernidade. Em Orides, ela adquire uma perspectiva que vai da intensa individualidade ao cosmos. Por isso, talvez, os dois versos finais terminando a anáfora desta última parte, ou capítulo: “o espelho devora / a face”. A face é apenas uma parte do rosto, não o seu todo. Mas é também significativamente uma metonímia da presença de Deus, aliás, nomeado na quarta parte do poema. Devorar implica, principalmente para os poetas brasileiros pós Semana de Arte Moderna, o ato antropofágico tão maravilhosamente imaginado por Oswald de Andrade. Pela antropofagia podemos amalgamar as diferenças, tornando-as  partes de nós mesmos, e, principalmente, adquirir as virtudes que desejamos. Os versos finais, sintomaticamente, vêm graficamente demarcados em um alinhamento diferenciado dos demais.

Narciso deixou de ser apenas um rapaz que se perdeu na autocontemplação e que foi punido com a morte por não ter atendido o apelo da natureza. Também não é mais um indício de autocentramento inócuo e sem sentido. Os mitos se reatualizam porque ainda nos falam de nossos desejos, de nossos destinos, de nossas inquietações. E a poesia ainda é palco para essas revelações especulares.



BIBLIOGRAFIA:



FONTELA, Orides. Teia. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

DURAND, Gilbert. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1986.

VERNANT, Jean-Pierre. A morte nos olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

VERNANT, Jean-Pierre et alli. Indivíduo e poder. Lisboa: Edições 70, 1987.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

LYRA, Pedro. A poesia da geração 60. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.        









[1] Texto apresentado no III Seminário nacional de História da Literatura, promovido pela pós-graduação em Letras, da FURG, 2007.
[2] Uma chance paraa infância na História da Poesia Brasileira; texto apresentado no II Seminário Nacional da História da Literatura, Rio Grande, FURG, 2005.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

carlos drummond e a poesia autobiográfica


(este texto foi apresentado sob forma de conferência em abril de 2011, na faculdade de filosofia e letras da universidade de córdoba, espanha)

Carlos Drummond de Andrade e a poesia autobiográfica
 
            Hoje em dia, muitas são as construções teoréticas para as escritas de um eu “real”, empírico, a quem o leitor imediatamente identifica ao nome do autor estampado na capa do livro. No Brasil, esta prática, isto é, o simulacro do eu sobre o simulacro da ficção, tem sido praticado com muito vigor desde os anos  90 do século passado, tendo se tornado, hoje em dia, uma prática muito recorrente. No entanto, alguns poetas modernistas se dedicaram, nos anos 60 e 70 à escrita autobiográfica. Os exemplos são abundantes, mas gostaria de nomear apenas um, talvez o mais conhecido fora do Brasil. Refiro-me a Carlos Drummond de Andrade. Sua obra poética se estende de 1930, com a publicação de “Alguma poesia”, até 1996, com “Farewell”, publicação póstuma. Começou a escrever poesia sob a influência direta do Modernismo Brasileiro, tendo passado por algumas fases, ou faces, as quais abarcam um período histórico marcado pela repressão política interna, passando pela Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria, preocupações socialistas, e inúmeras inovações técnico-formais na poesia.  Drummond, como o chamamos no Brasil,  nasceu em Itabira, cidade interiorana de Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902, e faleceu em 1987, no Rio, uma semana após a morte da única filha.
            Como é poeta de largo fôlego, sinto dificuldades em restringir minha proposta de leitura para este encontro. Então, de acordo com o tema – autobiografia – vou me ater à sua, chamada de “Boitempo”, um neologismo que junta dois substantivos: “boi”, característico da mansidão e do ato de ruminar (mastigar e re-mastigar o alimento); e “tempo”, cujo significado todos conhecemos, e que na composição de Drummond está intrinsecamente atrelado ao tempo passado. A autobiografia de Drummond é composta por três volumes de poesia: “Boitempo”, “Menino antigo” e “Esquecer para lembrar”, publicados em 1968, 1973 e 1979 respectivamente. Gostaria de lembrar, neste momento, que quando se fala em “autobiografia” e correlatos, geralmente a associamos a um complexo narrativo que alguém faz de sua própria vida. O caráter narrativo de tais textos parece estar, de uma forma ou de outra, tácito entre autor e leitor. Bem, Drummond, nos longínquos anos de 68, no Brasil, parece que intuindo a “fórmula” de Lejeune, antecipadamente rompe com aquele famoso quadro dogmático que Lejeune propôs em 1975: “narrativa retrospectiva em prosa”.
             Posso dizer que se trata de reafirmar uma atitude prenunciada no seu primeiro poema – “poema de sete faces”, de 1930 – cuja primeira estrofe diz o seguinte: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai Carlos! Ser gauche na vida (...). O “gauche” não é mera figura de retórica, porque, ao longo de sua obra poética, ele encarnou a diferença como marca identitária. Então, sua autobiografia seria necessariamente escrita em outra forma, que não a tradicional narrativa. Mas, curiosamente, ao longo de sua vida, ele manteve um diário, intitulado “O observador no escritório”, sobre o qual, por questões de tempo, não farei referência. Na série “Boitempo”, sua vida é “narrada” por uma voz enunciativa que algumas vezes se mostra em sujeito poético e em outras em eu-lírico. Há, por certo, um fio narrativo, porém perceptível apenas ao final da leitura dos três volumes.  A autobiografia de Drummond é composta por Boitempo – 84 poemas; Menino antigo – 128 poemas; e Esquecer para lembrar – 201 poemas. Dessa forma, a figura usual do autobiógrafo sofre algumas alterações. A escolha da prevalência do lírico sobre o narrativo implica, de antemão, um questionamento orgânico sobre as estratégias freqüentes para a palavra autobiografia.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Mário Quintana e o narciso escusado


Mário Quintana e o narciso escusado[1]



Profa. Dra. Raquel R. Souza

Programa de Pós-graduação em Letras / FURG


            Muito já se falou, mas não há como começar sem mencionar o centenário de Mário Quintana, se ele ainda estivesse vivo. Vou abandonar o homem de cem anos e me deter na poesia de Mário Quintana, esta sim, sem comemorações marcadas por uma cronologia que ela, a poesia mesma, supera com boa tranqüilidade. Minha leitura vai ser determinada por outras questões, as quais têm comparecido com boa freqüência em minhas pesquisas. Refiro-me à auto-representação com manifestações autobiográficas, sem que seja propriamente autobiografia. É daí que vem meu interesse por Narciso.

Para este momento, pretendo priorizar a reconstrução de um olhar que sobrepaira o próprio eu-lírico e que, ao mesmo tempo, se manifesta como uma marca na sua geração. É forçoso apontar que a poesia produzida pós Semana de Arte Moderna apresenta traços bastante característicos relativos à errância identitária. Do ponto de vista individual, essa busca identitária assume imagens sobre a infância, sobre a velhice, sobre as deformidades corporais, etc. Corrobora nessa persecução do eu-lírico uma certa uniformidade temática – o mito de narciso. A poesia de Mário Quintana apresenta essas características. A recorrência ao mito de Narciso, portanto, guiará meu olhar. Apenas uma observação: vou tratar de poemas retirados de Apontamentos de História Sobrenatural, livro publicado em 1976, quando o autor já podia ser considerado um homem na terceira idade, o que de certa forma direciona a leitura para elementos autobiográficos, pois é sabido que a madureza chama a memória.


O MITO E SUAS RECONFIGURAÇÕES


Os mitos, cada vez mais, têm se tornado material fecundo para tentativas de desvendamentos de procedimentos, modos de visões e natureza humanas. Parece óbvia essa afirmação, mas nem sempre foi assim. Gilbert Durand, em um pequeno volume intitulado Imaginário, traça um breve e significativo resgate dessas nem tão novas tendências contemporâneas. As Ciências, desde os inícios do século XX, com os impactos causados com a relatividade de Einstein, e posteriormente com as teorias relativas ao Big Bang e com as teorias quânticas das cordas e das supercordas, que abalaram as concepções da física tradicional sobre os conceitos de realidade, as Ciências da matéria já abandonaram uma posição purista e racionalista, cujos princípios lógicos remontavam à Aristóteles e, depois, Descartes, que propunham o monoteísmo da razão, cada qual em seu contexto histórico. Por outro lado, pode-se observar que o imaginário tem sido referência para muitos cientistas[2]. No campo das Ciências Humanas, onde nos colocaram, o mesmo tem se dado. O próprio Durand trabalhou insistentemente nesse caminho. Relativamente ao mito e suas inserções nas culturas humanas, ele observou que no decurso do tempo, os mitos se rearticulam, engordam e emagrecem, de acordo com as premências do momento em que são reatualizados. Durand chamou esse processo de “bacia semântica”. Não se trata, aqui, de analisar todas as seis etapas cronológicas irregulares, sobre as quais se baseia a teoria formulada pelo antropólogo. Mas elas são: escoamento, separação das águas, confluências, nome do rio, ordenamento das margens e meandros e deltas. Interessante é reparar que essa metáfora potamológica dá conta dos processos de reatualizações dos mitos. Durand diz que


Não há mito inicial, puro (...). Qualquer mito não é senão o conjunto de suas lições, poder-se-ia mesmo dizer de suas leituras(...) O mito decompõem-se em alguns mitemas indispensáveis que lhe conferem sincronicamente o sentido arquetípico, mas, diacronicamente, ele é apenas constituído pelas lições circunstanciadas por esse acolhimento, essa leitura muito particularizada (...) Há que sublinhar este paradoxo, em que a permanência só é conferida pelas variações. (DURAND; 1996:155).


Esse movimento, que pressupõe perdas de mitemas e ganhos de mitemas, ao longo dos tempos, tem se mostrado especialmente elucidativo quando se trata de poesia, e no nosso caso, a poesia modernista, que encerra como presença temática preponderante a especulação do eu pelo viés do espelho e eufemismos a ele relativos, e pelo espelhamento da metapoesia, formando ambas as faces de uma mesma moeda temática.



A FÁBULA  

           

Apesar de ser bastante conhecido o mito de narciso, até por conta das banalizações que vem sofrendo nas artes de consumo imediato, no ambiente literário sabe-se que o mito é inaugurado em Metamorfoses, do poeta latino Ovídio. No poema, o episódio relata a pequena e malfadada história do jovem efebo. Narciso é fruto da união forçada de Céfiso (deus-rio) com a ninfa Liríope. Narciso nasceu com extrema beleza, o que deixou sua mãe muito preocupada com seu destino, levando-a a consultar o adivinho Tirésias, que, perguntado sobre a vida do rapaz responde que ele viverá muito se ele não se conhecer. Ele segue, então, solitariamente. Ocorre que a ninfa Eco apaixona-se perdidamente pelo efebo e o segue de longe em suas caçadas, mas é incapaz de pronunciar o nome do amado porque ela não possui voz própria – ela só pode repetir as últimas palavras pronunciadas por Narciso. A ninfa foi castigada por Hera, esposa de Zeus, porque a jovem, com sua tagarelice, distraía a deusa enquanto Zeus fazia suas conquistas amorosas com outras ninfas. Ao descobrir o estratagema, a deusa a castiga, condenando-a a só repetir as últimas sílabas das palavras que ouvia. Por isso Eco não podia expressar seu amor por Narciso. Um dia o rapaz percebe que alguém o segue e que repete suas últimas palavras. Chama-a e pergunta por que ela o evita. Ao tentar responder Eco apenas consegue repetir as palavras do amado e, desesperada por não conseguir se fazer entender, abraça-o e é rejeitada. Narciso lhe diz: “Para longe com seus braços, eu prefiro morrer a deixar que você me toque”. Sendo rejeitada, a moça refugia-se nos bosques e montanhas e passa a morar sozinha até que, sofrendo as torturas do amor rejeitado, definha e se transforma em pedra, ficando somente o lamento da sua voz que repete as sílabas finais das palavras.



As outras ninfas também tentaram se aproximar do rapaz e foram repelidas, por isso invocaram a justiça, pedindo a Nêmesis que as vingassem: “que também ele possa amar e jamais possuir o objeto de seu amor”. Atendendo aos pedidos, depois de uma caçada, a deusa conduz Narciso a um recanto no qual, ao sentir sede, ele se inclina sobre uma fonte de águas cristalinas. Ao beber da água virgem, fica encantado com a imagem que vê nas águas e se apaixona por tão bela figura. A partir daí não sai de perto das águas da fonte Téspias sempre buscando um contato com a imagem adorada. Passa a não se alimentar e começa a definhar. Mesmo sabendo que se tratava de sua própria imagem o que via refletida nas águas límpidas, morre perdidamente apaixonado por si mesmo sem jamais conseguir tocar-se. No lugar onde jazeu nasceu uma linda flor de poderes inebriantes que recebeu o nome de narciso.


Originalmente, todo mito encerra uma aprendizagem, e este ilustra o poder de Nêmesis que restabelece a justiça universal. Narciso foi punido por ter desejado subtrair-se à lei comum e por ter se recusado a amar alguém.

 

O MOVIMENTO POTAMOLÓGICO


A literatura da Idade Média registra episodicamente o aparecimento do mito de narciso em composições literárias, mas é somente a partir XVIII que o motivo reaparece, já contando com algumas subversões, ou acréscimos dos mitemas originais, contados por Ovídio. Essas intervenções literárias provocam, no mais das vezes, modificações nos mitemas, bem como priorizam certos segmentos narrativos do mito “original” em detrimento de outros. Assim, o mito de narciso tem se configurado, a partir da modernidade, ou “modernidade dura”, como chama Zygmunt Bauman a esse primeiro momento da modernidade, como caso exemplar para a necessidade crescente de constituição identitária. Tanto o plano coletivo (como as noções de nacionalidade), quanto o plano individual (como as faces de um indivíduo) buscam nos mitemas que compõem o mito um alicerce sobre o qual os poetas constroem seus respectivos imaginários identitários. Por outro lado, esse imaginário está governado por questões sociais de imensas implicações, cujo assunto identidade tem mantido calorosas discussões contemporaneamente. Assim, convém lembrar que a idéia de identidade nacional, na vigência do século XIX, não foi naturalmente gestada e incubada na experiência humana, mas sim imperativamente colocada às pessoas. O Estado moderno a criou como ficção e daí decorre a individualidade crescente (BAUMAN; 2005).


O Modernismo Brasileiro, por vários aspectos, quer conscientes ou apenas fruto do movimento pendular que se observa na historiografia literária brasileira em relação à certas características, o Modernismo é um reverso ou uma paródia do Romantismo Brasileiro. As construções de identidade nacional adquirem pluralidade, assim como a identidade individual, que igualmente passa a cogitar outras faces. Naturalmente corroboraram para esse alargamento conceitual muitas outras perspectivas que não somente a sociologia. O fato é que as identidades, de grupo e individual, ambas passam a sofrer de uma grande instabilidade, pois entendem que a resposta da pergunta “quem sou eu?” necessita de uma série de referências aos vínculos que ligam o “eu” a outras pessoas. Sem dúvida, uma das maiores contribuições para a persecução do eu foi dada pela Psicanálise, especialmente Freud e suas já famosas divisões tripartidas da mente humana – a consciência, sub-consciência e inconsciência, assim como id, ego e superego.


No caso da poesia modernista brasileira, para começar a delinear melhor meu objeto de estudo para este momento, e deixando um pouco de lado as questões relativas à identidade nacional, a lírica brasileira tem sido marcada por um movimento especular que se biparte, mas que não se exclui. Mediando essas duas instâncias temáticas, ou seja, o duplo do indivíduo e a metapoesia, aparece o espelho, objeto que propicia a transcendência desde os barrocos, aos românticos e aos modernistas. Assim, o movimento especular se realiza em duas instâncias reflexivas, qual seja, o eu-lírico que se mira e não se encontra como se imaginava, e a poesia que se reflete no próprio fazer poético, tornando-se, ela mesma, um assunto inesgotável, porque encerra uma outra face da questão identitária, não a do homem propriamente dita, mas a do poeta enquanto produtor de arte e de conhecimentos.


A partir do tema do duplo, por exemplo, a poesia de Mário Quintana tem sido revisitada com uma certa freqüência em função da polarização bastante evidente entre o velho e a criança. Aliás, essa imagem pueril de “criança-poeta”, ou “poeta-criança”, que tem sido veiculada encerra desconhecimento dos ardis do poeta. É tentador ver assim, porque a simplicidade excessiva fecha a questão, mas parece-me que só isso não basta. Claro, a voz da infância, tema romântico por excelência, e por isso mesmo muito presente na poesia dos modernistas, remete à um movimento especular do sujeito – quando lembro o passado, única certeza ainda que relativa, a infância devolve uma certa tranqüilidade e uma certa segurança. Natural, então, que o velho se volte para suas reminiscências. Julgo, entretanto, que em Mário Quintana a infância tem uma implicação mais profunda do que essa, um tanto rasa para quem era conhecido por suas artimanhas e por seus aforismos irônicos. Bachelard dizia que na idade do envelhecimento, a lembrança da infância devolve-nos aos sentimentos finos (BACHELARD, 1988:110). E mais: a infância é o poço do ser. É nela que se encontram a memória e a imaginação, sem as quais não se alcança a imagem de sua própria infância.


            Por outro lado, o resgate pela via da imaginação criadora acerca da infância, remete ao mito de narciso, ou melhor, a uma reescrita do mito de narciso, redimensionando-o a partir das necessidades modernas de se ajustar identidades. Com esta proposta, gostaria de reavaliar a opinião de Tânia Carvalhal, para quem Mário Quintana não tinha apreço pela própria imagem em gesto narcisista; o poeta não se detém em contemplações nem em especulações existenciais (CARVALHAL, 2005). Mais adiante, no mesmo estudo ela afirma que a figura resultante de uma representação não é unitária e, por isso mesmo, não cabe numa única representação simbólica, sendo construída, portanto, sobre um processo de projeções: a imagem final é a do menino, que convive com a do homem, recoberta pela do pai, que, por sua vez, se projeta sobre a imagem do poeta (CARVALHAL, 2005).


Pois é justamente essa particularidade que coloca o poeta como homem de seu tempo e, portanto, perscrutor de uma identidade individual pluralizada, redimensionando o mito. Ele sabia que a imagem totalizadora não é possível. A imagem da infância, ou melhor, as imagens que a memória cria sobre a própria infância, são revelações especulares do velho que se busca, porquanto escreve sobre o assunto, mas que apesar das semelhanças, não lhe devolvem as respostas às perguntas implícitas. Trata-se, enfim, de um narciso que, modificado pelas vicissitudes dos tempos decorridos desde o narciso ovidiano, busca uma outra via de conhecimento que não o reflexo direto e na mesma temporalidade. O mito, nestes momentos de alta modernidade, de modernidade líquida, de sobremodernidade, de pós-modernidade, o mito de narciso incorporou outros mitemas e abandonou outros tantos. De mera instrução para não se desviar da lei comum ao esquivar-se ao amor reprodutivo e da lei comum, o século XX redimensiona o protagonista, colocando-o nas mais diversas situações de ausência de referenciais imediatos que lhe forneçam uma identidade, bem como altera a sua substância juvenil. É difícil, portanto, saber se o mito de narciso é que conforma uma poesia sobre a infância no espelho da velhice, ou se é justamente por se colocar como uma poesia especular antípoda entre o velho e a criança que o mito passa a ser recorrente.


            A recorrência ao mito de narciso na poesia de Quintana é significativa. Mas não como uma imagem totalizante, na qual se possam ler os mitemas mais importantes, ou mais reconhecíveis, e ver uma narrativa completa. Não se pode esquecer que a época de Mário é marcada pela fragmentação, ou pela multiplicação dos pedaços que antes compunham um todo facilmente montado como se fosse um quebra-cabeça. As partes que volta e meia compõem as identidades do poeta são encabeçados pela figura do pai (“O velho do espelho”), por objetos insólitos para essa relação, tais como o baú (“A alma e o baú”), retratos de parede das avozinhas (“O espelho”), elementos da natureza (“Auto-retrato”), os sapatos (“Canção de primavera”), e outros. É bom lembrar de Bauman: (...) só se pode comparar a biografia com um quebra-cabeça incompleto, ao qual faltam muitas peças (e jamais se saberá quantas). Deduz-se que a construção de uma identidade, marca mitêmica mais importante no mito para os tempos modernos e sucedâneos, assumiu a forma de um experimento que não tem fim. Por outro lado, a identidade só se estabelece como busca quando se a perde. Sempre que se ouvir essa palavra [identidade], pode-se estar certo de que está havendo uma batalha. (...) Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da refrega (BAUMAN, 2005).


A releitura de Mário passa por recortes de mitemas, que muitas vezes fazem com que nossa leitura se disperse e não perceba que por trás de sua poesia está um homem representativo do seu tempo, isto é, visceralmente multiplicado em dois ou mais imagens de si mesmo. Para isso, é preciso considerar que o mito de narciso tem sido muito caro à modernidade. A crise de identidade advinda com o agravamento da modernidade tem no mito um respaldo significativo. Em Mário, não se trata apenas do sujeito particular, mas de uma representação de humanidade muito afeita ao Brasil do século XX, como aliás, seus companheiros de geração modernista: Cecília Meireles e seus auto-retratos, Vinícius de Moraes como o homem belo e erótico, Murilo Mendes multiplicado em suas inúmeras formas de fazer poesia, Jorge de Lima e as religiões que o formaram, etc.



De Quintana, tomo um poema especial para esta perspectiva: “Canção”:



Cheguei a concha da orelha

à concha do caracol.



Escutei

vozes amadas

que eu julgava

eternamente perdidas.



Uma havia

que dentre as outras mais graves

tão clara e alta se erguia...



que eu escutei mas descobri

que era a minha própria voz:

sessenta anos havia

ou mais

que ali estava encerrada.



Meu Deus, as coisas que ela dizia!

As coisas que perguntava!

Eu deixei-as sem resposta.



As outras vozes, mais graves,

tampouco

nenhuma lhe respondia.



O mundo é um búzio oco,

menino...



mundo de vozes perdidas

e onde apenas o eco

eternamente

repete as mesmas perguntas.




Trata-se de poema de forma bastante livre, assim como a constituição dos seus versos. As estrofes são variadas, o que indica uma certa liberdade formal que certamente acompanha também uma certa liberdade temática. A primeira leitura do poema não desvenda de imediato o que o está formatando, isto é, o mito de narciso. A paráfrase, bastante simples, revela que o texto recria uma imagem, ou uma brincadeira muito comum entre as crianças, pois se trata de ouvir o marulhar do côncavo das conchas. Essa cena apresenta um pouco de movimento, seguido de um quadro estático, no qual o eu-lírico apenas ouve um som e se põe a fazer considerações que repercutem no seu pensamento. Aquilo que ouve causa-lhe surpresa, mas não o movimenta o suficiente para agir. Ao ouvir as vozes do passado em substituição do marulhar, uma delas a sua própria sessenta anos antes, fica calado e não interage com nenhuma. Conclui que o mundo é um búzio oco com as mesmas perguntas de sempre, sem as respostas de sempre. Aparentemente nada conduz nosso olhar para os mitemas de narciso, contudo é sempre bom lembrar que os poetas de origem modernista, como ele, mantêm, ao lado da metapoesia, constituindo uma das partes do duplo, a auto-persecução, material mitêmico fundamental do mito na modernidade e sucedâneos.


 A ação inicial que o poema concretiza é muito singela e remete a um contexto infantil. O eu-lírico pretende escutar alguma coisa na casca do caracol, como o fazem as crianças. São duas conchas, de materiais radicalmente diferentes – o pavilhão da orelha, que tem uma forma encaracolada para captar melhor o som, e a casca protetora da lesma cujo formato é espiralado. No poema, a cartilagem humana e a massa óssea do molusco se aproximam para unir os tempos, isto é, o presente e o passado. Sintomaticamente estas primeiras estrofes do poema são governadas por verbos no pretérito. 

O poema admite uma divisão ternária concernente aos tempos verbais empregados. Comparecem, em ordem de presença, o pretérito perfeito, o pretérito imperfeito e o indicativo presente. Essa gradação encerra uma significação muito particular de o poeta lidar com suas marcas do passado. 

A ação propriamente dita é realizada no perfeito indicativo – cheguei – indicando uma ação realizada. Esse passado se manterá fechado até o momento em que na continuidade desta ação se sobrepõe uma outra, de caráter não ativo, isto é, escutei – também no pretérito perfeito. Ocorre que essa ação encerrada no passado passa a ser relativizada com o inesperado do resultado: pela audição, o eu-lírico teve acesso a um tempo que achava enterrado. A partir do pronome relativo (“que eu julgava”), que serve justamente para relativizar as partes, o tempo verbal, ainda que no pretérito, passa a ser declinado no imperfeito, indicando uma certa continuidade da ação, diminuindo o caráter definitivo do passado. Aparecem, na seqüência, os verbos “julgava”, “havia”, “erguia”, “era”. O ato de aproximação e de ouvir as vozes do passado, que estavam reclusas na concha, determinam uma relação especular entre o homem de hoje e a criança de ontem. A quarta estrofe coloca o inusitado da descoberta. O menino que fora retorna não pela imagem visual, típica no mito de narciso, mas pela imagem auditiva: “que eu escutei mas descobri / que era a minha própria voz: / sessenta anos havia / ou mais / que ali estava encerrada.

             Sem dúvida, muitas outras questões estão presentes neste poema de Quintana. Mas gostaria de apontar que a infância, nele, não serve apenas como resgate de um tempo feliz, à moda romântica. Ela é o decalque do original. Como cópia, deveria estar à serviço da perscrutação, no entanto o eu-lírico é categórico. Reconhece-se na voz do passado, mas nega-se ao diálogo. Certamente, o próprio poema reflete sobre essa negativa. A última estrofe determina, pela declinação temporal aliada à significação dada à Eco, a incompatibilidade entre aquilo que foi com aquilo que é. Assim, o poeta recoloca e redimensiona um mitema muito caro ao mito de narciso, qual seja, a Eco, ninfa que desencadeia uma boa parte da dissonância identitária do rapaz. No poema, destituída de tamanha importância, resta-lhe apenas ser uma representação, porquanto está substantivada, de uma repetição inócua e estéril, pois não é capaz de responder, apenas de repetir as perguntas. Esta terceira e última parte do poema está declinada no presente do indicativo, e o faz através de um verbo de ligação, cuja significação se concentra em definir uma existência: “O mundo é um búzio oco”.

            Há, no final do poema, um sentido de pessimismo que se revela na desistência do eu-lírico em buscar sua identidade perdida da voz infantil (passados sessenta anos ou mais) que a concha do caramujo e da sua orelha lhe trazem de volta. As perguntas que sua própria voz lhe fazem ficam sem resposta e sem atenção. Apesar de saber sua, a voz do passado não lhe pertence mais. A descontinuidade entre o original e o decalque parece não ter solução.

            A mito de narciso, neste poema, perde muitos de seus mitemas “originais”, adaptando-os e redimensionando-os para um outro “ensinamento”. Não há mais a presença direta da água como espelho sobre o qual o sujeito se debruça para se ver. A Fonte Téspia assume uma outra configuração. A “concha”, cujo simbolismo está relacionado à água, à fecundidade, à libido, ao feminino tem uma abrangência particular e individual, e sua versão como “búzio”, que também se liga aos mesmos arquétipos da lua-água, da gestação-fertilidade compreende um todo maior que ultrapassa a medida individual – o mundo. No entanto, ambos elementos simbólicos compõem, no poema, uma expressão de significado oximórico, pois o búzio é produtor do som primordial e originário das águas primevas (esse caráter primordial está colocado, implicitamente, no tempo a que o eu-lírico localiza nas vozes ouvidas – sua infância), bem como representa a noção do eu, da consciência individual, através do desenvolvimento espiralóide de suas formas, remetendo, assim, às grande evoluções interiores e exteriores (CHEVALIER; 1997). 

Quintana diferentemente de muitos poetas de sua geração, renega o auto-conhecimento pela via especular. No mito, o espelho sobre o qual se dá o enamoramento e o auto-reconhecimento é feito de água, a Fonte Téspia, buscando nela a imagem visual necessária para reconhecer o eu-outro. Quando Narciso consegue identificar-se como imagem e decalque, morre de inanição ao lado das águas. No poema de Quintana, o espelho não se faz de água, mas de ar, já que a Fonte se transmuta em concha e dela saem as vozes em cima das quais o eu-lírico reconhece-se, passados sessenta anos. A imagem que propicia o auto-reconhecimento é auditiva, e não visual. Ocorre que esse narciso se recusa a se ver e a se ouvir, isto é, não quer saber de eu e eu-outro. Não morre explicitamente como o do mito, mas sua recusa equivale a uma espécie de morte, na qual se percebe um certo conformismo diante das indagações humanas. De forma inusitada, na poesia de Quintana, a poesia de Apontamentos de História Sobrenatural, há reescrituras do mito, nas quais o poeta prioriza certos segmentos, como neste caso a relação especular, mas igualmente os modifica alterando suas substâncias, como da água passa ao ar, ou da imagem visual passa à auditiva. Por outro lado, a persecução intensa que vem marcando o mito desde a modernidade, nele deixa de ser alvo a ser atingido, porque a imagem especular, descoberta sempre com surpresa, é negada. Trata-se, enfim, de um narciso escusado, porquanto se recusa a um dos mitemas mais significativos do mito para a modernidade, qual seja, esgaravatar a si mesmo.   





  • poemas que acompanham esta leitura sobre o mito de narciso em Quintana:





O espelho



E como eu passasse por diante do espelho

não vi meu quarto com as suas estantes

nem este meu rosto

onde escorre o tempo.



Vi primeiro uns retratos na parede:

janelas onde olham avós hirsutos

e as vovozinhas de saia-balão

como pára-quedistas às avessas que subissem do fundo do tempo.

O relógio marcava a hora

mas não dizia o dia. O tempo,

desconcertado,

estava parado.



Sim, estava parado

em cima do telhado...

como um catavento que perdeu as asas!





O auto-retrato



No traço que me faço

- traço a traço –

às vezes me pinto nuvem,

às vezes me pinto árvore...



às vezes me pinto coisas

de que nem há mais lembrança...

ou coisas que não existem

mas que um dia existirão...



e, desta lida, em que busco

- pouco a pouco –

minha eterna semelhança,



no final, que restará?

Um desenho de criança...

corrigido por um louco!





Mundos



Um elevador lento e de ferragens belle époque

me leva ao antepenúltimo andar do Céu,

cheio de espelhos baços e de poltronas como o hall

de qualquer um antigo Grande Hotel,



mas deserto, deliciosamente deserto

de jornais falados e outros fantasmas da TV,

pois só se vê, ali, o que ali se vê

e só se escuta mesmo o que está bem perto:



é um mundo nosso, de tocar com os dedos,

mas este – onde a gente nunca está, ao certo,

no lugar em que está o próprio corpo



mas noutra parte, sempre do lado de lá!

não, não este mundo – onde um perfil é paralelo ao outro

e onde nenhum olhar jamais se encontrará...





Vidas



Nós vivemos num mundo de espelhos,

mas os espelhos roubam nossa imagem...

quando eles se partirem numa infinidade de estilhas

seremos apenas pó tapetando a paisagem.



Homens virão, porém, de algum mundo selvagem

e, com estes brilhantes destroços de vidro,

nossas mulheres se adornarão, seus filhos

inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.



E não posso terminar a visão

porque ainda não terminou o soneto

e o tempo é uma tela que precisa ser tecida...



mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida?

que outro lábio canta, com a minha voz perdida,

nossa eterna primeira canção?!





O velho do espelho



Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse

que me olha e é tão mais velho do que eu?

Porém, seu rosto ... é cada vez mais estranho...

meu Deus, meu Deus... parece

meu velho pai! – que já morreu!

Como pude ficarmos assim?

Nosso olhar – duro – interroga:

“O que fizeste de mim?!”

eu, Pai?! Tu é que me invadiste,

lentamente, ruga a ruga... Que importa?! Eu sou, ainda,

aquele mesmo menino teimoso de sempre

e os teus planos enfim lá se foram por terra.

Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –

Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...







[1] Texto apresentado no Seminário sobre os Cem anos de Mário Quintana, FURG, novembro de 2006.
[2] Cf. GLEISER, Marcelo. O fim da terra e do céu – o Apocalipse na Ciência e na Religião. São Paulo: Cia das Letras, 2001.